Um sopro de vida no coração
Era 9 de abril, uma terça-feira, logo depois do almoço, quando recebi o telefonema da assistente social da Vara de Infância dizendo que tinham encontrado uma criança no meu perfil. Mal tive tempo de reagir. “É o seu perfil, segundo o cadastro: Maria Eduarda, 4 meses, com sopro no coração, parda, se encontra em um abrigo em Bonsucesso”.
– Sim, mas o que tenho que fazer para conhecê-la?
“Você tem que marcar com a assistente social do abrigo, anota aí os números”. Infelizmente, ela não estava no Abrigo Luz e Amor nesse dia e não poderia ir lá. Liguei para minha amiga advogada, Luciana Zani, que mora em Goiânia, que foi taxativa: “Adriana, essa criança já é sua. Não espere nem mais um minuto para vê-la. Liga para o abrigo e fala com quem estiver lá que você quer conhecer sua filha”.
Liguei. Falei com a Vó, dona Nescy, que, junto com a neta Carol, cuidou da minha filha até o dia em que ela foi comigo para casa. “Ahh, pode vir sim, agora, na hora que você quiser”.
Partimos para lá, eu e minha ex-companheira. Na mesma hora em que vi Maria Vitória descobri que, felizmente, o sopro que teoricamente ela tinha era no meu coração e não no dela, que ela era Maria sim, mas Vitoria e não Eduarda, e, bem menos importante, que era negra e não parda. Foi meu coração que ganhou um sopro de vida, na verdade, uma rajada arrebatadora, naquela varanda do casarão em Bonsucesso, onde, em três bebês-confortos no chão, se encontravam três recém-nascidos. “Nãoooo é nenhum desses, eles nem podiam estar aqui”, correu Carol, segurando os três no colo, com uma prática que me impressionou, entrando num pulo para dentro do berçário do abrigo.
O sopro que atingiu meu coração estava trocando a fraldinha e apareceu no colo de uma das cuidadoras, que virou a pequenina de frente para nós duas. Não tive muita reação, não conseguia segurar minhas lágrimas, não conseguia falar, não conseguia nem me mexer direito. Acreditem ou não, talvez a tenha segurado naquele dia por pouquíssimos instantes. Foi minha ex-companheira que a pegou no colo, deu a mamadeira, enquanto eu olhava aquela criança com as bochechas gordas, e uma expressão triste no olhar.
Quando cheguei mais perto, chorei. Chorei, não por ela não ter sido gerada no meu ventre e nem ter amamentado em meu peito, mas porque aquela menina foi parida dentro de mim, nas minhas profundezas, veio de dentro do meu coração e só eu sei como essa gravidez foi tão forte e teve um parto tão dolorido e feliz que, ao mesmo tempo, deu a ela não só meu espírito, mas todo o amor que carrego em minha alma. Amor que, estou certa, a cada dia a alimenta para torná-la uma pessoa mais forte e generosa, que entenda principalmente que respeitar o outro é ser, sim, o humano que todos nós deveremos ser, todos os dias.
Ainda demorou três dias antes que ela fosse para casa e pudesse começar sua jornada de Luz e Amor, desta vez numa família, desenvolvendo a sensação de pertencimento que passou a ter ao chegar em casa, ver seu quarto, almoçar com os avós, brincar com os tios e primos, até chegar a acalantar a priminha Carol.
Na Vara de Família, a celeridade não é exatamente o atributo mais forte. Na quarta-feira, dia seguinte ao telefonema da assistente social, estava lá eu antes das 9h, esperando a instituição abrir e a assistente social chegar para termos a reunião que me daria formalmente o aval para ser mãe da MV e o termo de desligamento para que eu pudesse retirá-la do abrigo. “Infelizmente não posso recebê-la hoje. Só amanhã”. “Mas poxa, isso significa mais dois dias no abrigo!”.
“Adriana, não vai ser isso que vai mudar a vida dela. Você tem certeza que quer brigar com o Serviço Social? Espera mais um dia”, me aconselhou uma funcionária da Defensoria Pública.
Esperei, mas voltei ao abrigo, para vê-la novamente. Na quinta, estavámos lá na Vara, onde passamos a tarde toda e de onde saímos com o termo de desligamento já céu escuro, o que me fez desistir de ir buscar minha filha naquela noite.
E foi naquele mesmo dia que Andrea, minha irmã, apareceu lá em casa com o quarto pronto da minha menina: bercinho de armar, lençol, toalha, meias, bodies, tudo que ela precisava para seus primeiros dias na nossa casa. No dia seguinte seria dia de Maria. Estava tudo pronto. Depois de várias tentativas de inseminação artificial e fertilização in vitro, e de um longo tratamento de reprodução assistida que não foi adiante, aprendi a não criar expectativas, e fazer enxoval seria, de fato, a maior delas.
Os longos meses de tratamento e todo o desgaste psicológico (isso sem falar no financeiro), a frustração de engravidar duas vezes e em uma delas chegar a fazer a ultra para ouvir o coração do bebê, que não bateu, foram decisivos na minha mudança de planos. Meu médico me deu a opção de pagar o tratamento de uma jovem desconhecida de 25 anos e em contrapartida ganhar dela um óvulo, usar o sêmen de um doador e tentar mais uma gravidez, aos 42 anos. Ficar com que parte? Ahh, a do risco. Ah não, a proposta definitivamente foi indecente e, por um lado, decente também por ter sido decisiva para que eu optasse pelo projeto Adoção. Com a ajuda de amigos que já passaram por isso e me orientaram que o primeiro passo seria ir a uma reunião mensal, comecei minha jornada na Vara de Infância em 2009, fui habilitada em 2012 e recebi minha filha em abril de 2013. Hoje dizem que é tudo mais rápido. Mas comigo o tempo foi cruel. Passou, mas foi, sim, cruel.
Aos 48 anos começava então minha jornada de amor, escolhida a Dedo de Deus, e meu sopro de vida virou mesmo uma ventania que balança minha estrutura física, me arrebata do chão, se joga em mergulhos no ar para abraços apertadíssimos, sempre com muita emoção. Sim, nada com MV é sem emoção. Em quatro anos de vida, quatro pneumonias e duas internações, mas, ao mesmo tempo, um manancial de alegria, viagens, gargalhadas e muitas declarações de amor. Talvez o que ela faça de melhor. O tempo todo.
Maria Vitória chegou numa sexta-feira e, ao contrário de muitas crianças filhas de genitoras desconhecidas, chegou saudável. Não era soropositiva, não tinha nenhuma doença sexualmente transmissível, hepatite ou afins. No sábado de manhã, já estávamos no pediatra. Duas folhas de exames de sangue, incluindo o teste do pezinho, preencher as lacunas da carteira de vacinação, cuidar de uma assadura e de uma sarna nas perninhas foi moleza. Foi? Não (risos). Lembro que precisávamos ferver toda a roupinha dela diariamente. Em panelas grandes onde colocávamos inclusive os lençóis e toalhas. Mas ela era saudável e agradeço profundamente a Vó e Carol por terem cuidado dela com carinho durante os 4 primeiros meses de vida, quando ela já poderia sim estar comigo, já que eu estava habilitada pela Justiça. Mas isso é passado.
Não foi moleza ver que nas primeiras semanas ela chorava sem parar e dormia com as mãozinhas entrelaçadas, apertadas mesmo, como se precisasse de um conforto que, imagino eu, no abrigo só podia tirar dela mesma. Disseram que ela dormia de mãos dadas com outro bebê. Há quem não acredite. Eram 11 bebezinhos e pouquíssima gente para cuidar deles, sem falar nas crianças maiores. Por pura falta de recursos, não por falta de amor e dedicação, que fique bem claro. Ela também tinha espasmos de noite, tremia sempre, como se tivesse medo de viver. Como se não soubesse o que viria pela frente. Mas ela soube uns meses depois. Quando parou de chorar incessantemente e, de repente, passou a dormir com as mãozinhas para cima, como se tivesse perdido o medo. Ou mais. Como se ele nunca tivesse existido. Ganhou o pertencimento, uma família e, com ele, a segurança de ser amada não por uma, mas por duas mães.
É moleza ser mãe de uma menina de 4 anos aos 51? Não (risos). Mas não há nada nesse mundo que me traga mais felicidade do que chegar em casa e ser recebida por ela, de braços abertos, de ser apertada, beliscada nas bochechas. Dizem que ela teve muita sorte de me encontrar. Não é verdade. Quem teve sorte, a maior do mundo, fui eu, de encontrá-la. Semana passada, tive uma crise de labirintite e ela resolveu cuidar de mim. “Você fica aqui que vou lá na cozinha pegar um pão de queijo. Não fica com medo não, fica tranquila. Se aparecer algum bicho, você me chama. Relaxa, fica aqui, fica calminha, vendo TV, eu já volto”.
Outro dia ouvi de uma amiga próxima que Maria Vitória tem o olhar triste. Mas conversa um pouquinho com ela. Ganha intimidade. Você vai se debulhar de rir. Aos 4 anos, ela tem humor de sobra. Não tem um namorado e sim um companheiro. E faz perguntas que me deixam atônita. Mãe, você é amiga da minha outra mãe? Você pode me dar um pai? Por que o vovô tem aquela barriga? Você sabia que criança gosta de novela? Quando vou poder andar na frente no carro? Você sabia que você é meu amor? Essa sim, sem dúvida, não me canso de escutar…é a melhor delas.
Depoimento emocionante. Um belo exemplo. Ex-colega de trabalho de Adriana, passei a admirá-la ainda mais. Parabéns, Mulheres50+
“Nunca é tarde pra amar!” E as crianças nos mostram isso o tempo todo.
Parabéns, Adriana, pela iniciativa. Adotar uma criança, em qualquer idade, requer não só amor, mas disposição e coragem.
Que você sirva de exemplo para todas as pessoas que têm esse desejo!
Simplesmente amei seu relato. Beijos
Que lindo texto! Nada iguala a maternidade, em qualquer idade e de qualquer forma . Parabéns!
Essa mulher é admirável. Uma história de amor muito bonita.
Amo essa garota?
Maravilhosa Lição de Humanidade.
Estou no trabalho e choro.
A vizinhade frente percebeu.
Parei de ler antes do fim. – Não quero ficar dando preocupações e nem explicações aos colegas.
Grato Adriana.