Tudo o que ele quer é botar o bloco na rua
Eu costumava acordar no meio da madrugada, preocupada com o paradeiro do meu filho Lucas. Onde estaria ele, no alto dos seus 16 anos, cheio de marra e de certezas, àquela altura da madrugada? Não tinha como segurá-lo em casa, os meninos todos estavam na pista e no auge dos hormônios que extrapolam as condições normais de temperatura e pressão quando se é adolescente. E assim, entre dúvidas, medos e incertezas, eu acabava adormecendo, e seguia enfrentando aqueles anos terríveis da adolescência do meu filho mais velho. Eu estava ali no início dos meus 40 anos…
Dez anos depois, me deparo diante de uma situação muito diferente, muito nova para a mãe de um outro adolescente, o João. Foi-se o tempo das preocupações com que o filho fazia. Hoje não me penso mais em “onde será que está o meu filho a essa hora”? Nem com as companhias, nem com as brigas de gangues, com os assaltos e as surpresas da rua, nem com a iminência das drogas ou com a dura da polícia na madrugada. Com meu João Pedro, que está prestes a entrar nos seus 14 anos, minha preocupação é em como será que ele vai ter amigos.
João é portador de Síndrome de Down, uma alteração genética que faz que com o cromossoma 21 seja alterado no momento em que o feto ainda está sendo gerado. O número de cromossomos presente nas células de uma pessoa é 46 (23 do pai e 23 da mãe), dispostos em pares, somando 23 pares. No caso da Síndrome de Down há um erro na distribuição e, ao invés de 46, as células recebem 47 cromossomos e este cromossomo a mais se liga ao par de número 21. Foi daí que surgiu o termo Trissomia do 21, que todo mundo acaba conhecendo como Síndrome de Down.
A questão não é a síndrome em si, mas a ideia que as pessoas fazem dela e o desconhecimento ou a falta de vontade de ir um pouco mais além para entender como são essas pessoas e quais as reais limitações delas. O João é um menino como todos os outros. Ele passou para a 8ª série do Ensino Fundamental, no CEAT, e segue com a mesma turma desde quando ele entrou na escola, aos 4 anos. Ele também joga futsal – e é um dos melhores –, faz aulas de bateria, de cavaquinho, toca múltiplos instrumentos e tudo o que João sonha nesse momento é sair com os amigos e namorar.
Mas o João não é mais convidado para os programas de fim de semana da galera. Não, ele não é rejeitado. No grupo da escola adoram ele. Mas é diferente, desde que saiu da infância, quando as coisas eram mais fáceis. Brincar com uma criança com Síndrome de Down, parecia que era mais fácil. Mas, agora, que as conversas são outras, que eles perderam a inocência, as coisas ficaram esquisitas pro lado do João. É como se ele não estivesse ali. É uma invisibilidade.
Não sou a única que passa por isso. Faço parte de um grupo chamado Jovens Amigos RJ Down e o que nos une é a pergunta: “O que vamos fazer com nossos filhos SD, que estudam em escolas regulares, que convivem com pessoas ditas normais em todo tipo de atividade, que frequentam diferentes grupos, mas que não encontram mais uma interação espontânea com outros jovens para que possam ter uma adolescência como todos?”.
Assim, nos unimos nesse grupo para tentar fazer com que nossos filhos se tornassem amigos e, quem sabe, pudessem seguir com sua vida. Mas somos nós fazendo escolhas pelos nossos meninos. E eu me pergunto o tempo todo se estarão eles obrigados a serem amigos apenas de pessoas com a mesma condição que a deles. Não acredito nisso, mas também não encontro outro caminho. Amigo a gente escolhe por que gosta, por que encontra afeto, por que tem interesses em comum, gosta das mesmas coisas. Então, por que as pessoas com SD só podem ser amigas e se relacionar com pessoas com SD?
João adora a Clara, amiga da escola que gosta de futebol, como ele. João queria ir na casa do Hugo, menino curioso e levado que o instiga a ousar mais, a se jogar mais nas aventuras. João não pode ser amigo apenas dos amigos que eu ou o pai dele encontrarmos para ele. A vida não funciona assim.
E assim, nos meus 54 anos, sigo buscando compreender e aprender. Sabendo que ainda temos muitas batalhas. João Pedro faz lindos filmes e fotos, adora samba, música e carnaval. É um amigaço, um companheiro e tanto. Para quem quiser desfrutar da companhia dele, dividir com ele as aventuras e quem tiver um pouco de paciência para conviver com algumas das suas poucas limitações, como sua fala, mais lenta e enrolada que o normal. Paciência…
Quando o João nasceu, eu e o Maraca, o pai dele, participamos de um filme muito delicado e incrível chamado “Do Luto À Luta”, dirigido pelo amigo Evado Mocarzel, pai da Joana. Naquela época a gente já tinha saído do luto e já estava em plena luta. E, por isso, eu sei e afirmo: tudo o que o João quer é botar o bloco dele na rua. E, de um jeito ou de outro, eu sei que ele vai conseguir. A verdade é que tudo isso dói muito mais na gente do que nele.
Lindo Rita assim como lindo é o João, Meu parceiro na bateria dos blocos.
Textos lindos e sensíveis, Rita e Claudia. Minha admiração pela luta de vocês duas. Bjs