Querer todo o tempo do mundo
“Calma, o mundo não vai acabar amanhã”. Essa frase faz parte das minhas primeiras memórias infantis. Devo tê-la ouvido do meu pai quando tinha cinco ou seis anos. Estou a um ano dos 50, e o conselho que tantas vezes relembrei começa a perder o sentido. Mais do que nunca, tenho a sensação de que a vida vai acabar amanhã.
É bom deixar claro que, em mais de 20 anos de jornalismo, cobri previdência, IBGE, editei macroeconomia. Logo, sei bem que a expectativa de vida dos brasileiros, em especial das brasileiras, vai muito além dos 50 anos. No entanto, preciso informar também que tenho algum problema com o tempo e que, nem mesmo a terapia conseguiu dar conta. Vivo com pressa, estou sempre atrasada. Se, porventura, tenho tempo de sobra para algum compromisso, logo encaixo outra tarefa e dou um jeito de me atrasar.
Aliás, como bem percebeu minha filha Luiza, nasci atrasada. E nasci mesmo. Passei tanto da hora de nascer que precisei ser arrancada a fórceps, numa daquelas práticas da medicina do fim dos anos 60. Então, acho que já cheguei ao mundo com a sensação de ter perdido muito tempo.
Sempre tive uma urgência de vida. Penso rápido, falo rápido, escrevo rápido. E pago a conta dos prejuízos que isso acarreta, sobretudo para alguém que decidiu ser jornalista. Quando me empolgo, ninguém entende uma palavra do que eu falo. Quando escrevo, vou engolindo preposições e atropelando verbos. E isso, claro, também me rendeu alguns apelidos. O mais marcante, dado por Luiza, “coelho da Alice, tô atrasado, tô atrasado”, virou uma tatuagem compartilhada: o coelho na perna dela e o relógio dele, na minha.
Nada mais adequado para alguém com uma relação tão intensa com o tempo. Esse ser que, na explicação de Luiza, para mim a melhor de todas, “é a coisa mais próxima que existe da definição teórica de Deus: não tem começo nem fim, está em todos os lugares, com todas as pessoas, o tempo todo, desde sempre. E, dizem, é capaz de curar tudo”.
Aliás, o jornalismo veio curar minha necessidade diária de vencer a briga contra o tempo. Lembro que, ainda na faculdade, li uma entrevista em que o Otávio Frias Filho sentenciava: “o jornalista é um ser que tem pressa por natureza”. Tive certeza de ter feito a escolha certa. A pressão da redação se casou com meu senso de urgência. Quando troquei o jornalismo impresso pelo tempo real da web, uma amiga e ex-chefe festejou: “é a pessoa certa no lugar certo”. Quando fiz o caminho de volta para o papel, demorou pouco para ir para o fechamento e, ali sim, a gente vivia apressada, correndo contra os minutos para evitar atrasar as páginas.
Quando, há menos de dois anos, aceitei um convite para trocar a redação pela comunicação corporativa, meu maior medo era morrer de tédio. Por sorte, ou por essas atrações que a gente sempre tem pelas mesmas coisas, meu fantasma não se fez real. O novo trabalho não tem tédio e, sim, um monte de prazos legais e passíveis de multas.
Eu sei que essa aceleração não é boa, que já foi até definida como síndrome. E, sim, já tentei mudar, já fiz meditação – e não consegui ter paciência para ficar quieta 20 minutos sem fazer ou pensar em nada. Sequer sou capaz de assistir televisão sem ler um texto ao mesmo tempo. Reunião demorada para mim é sessão de tortura.
Mas será tão grave assim? Deve ser. Dia desses no supermercado – não sem razão um dos programas que mais detesto no mundo – uma senhora que resolveu puxar papo disse que eu era impaciente, que isso me tornava candidata a ter infarto ou AVC. Acrescentou que pessoas ansiosas tendem a ser depressivas e me mandou procurar um psiquiatra e tomar remédios tarja preta, porque as drogas modernas são ótimas. Tudo porque eu já não conseguia ficar imóvel na fila, depois de constatar que, das duas horas de que dispunha para fazer as compras do mês, havia gasto 30 minutos só tentando comprar um salmão. Aceitei resignada o diagnóstico da desconhecida sem ao menos perguntar se ela era médica. Achei que se soubesse algo mais sobre mim, minha voz que fosse, ela chamaria uma ambulância e me meteria numa camisa de força.
O fato é que lentidão, para mim, sempre esteve associada a tristeza. Se me virem andando devagar pela rua, podem estar certos de que estou, no mínimo, em estágio pré depressivo. E o que tudo isso tem a ver com a chegada dos 50? Quase nada, só essa sensação mais concreta, ou talvez mais racionalmente justificável, de que tenho cada vez menos tempo.
Sempre digo que o melhor espelho do próprio envelhecimento é o rosto do outro, sobretudo daquele amigo que você não encontra há tempos e, de repente, se espanta porque ele está cheio de rugas. Sempre que isso acontece, penso: o mesmo ocorreu com meu rosto e só não percebo porque me vejo todos os dias.
O aproximar da segunda metade da vida trouxe outro efeito parecido, só que bem mais dramático: a consciência da finitude, que chega de forma implacável com a morte de amigos, de companheiros de trabalho, de pessoas da mesma faixa etária ou poucos anos mais velhas.
Mais que as rugas, as celulites, a briga com a balança, a menopausa à espreita e a quase insuportável adolescência da filha de 15 anos, o que mais tem me afetado com a proximidade dos 50 é essa sensação de não ter mais muito tempo. Isso não é necessariamente ruim, porque traz junto uma gana de viver, uma vontade de fazer, de experimentar, de não deixar para depois, de não querer esperar nada. Quero ler 500 livros, escrever inúmeros textos, saltar de asa delta, aprender a dançar, conhecer mil lugares, viver novos amores…Xiiii!!!!
“Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou”! Só que, a partir daí, minha poesia é outra, porque já não sou tão jovem e não tenho todo o tempo do mundo. Tenho apenas toda a vontade do mundo, pois estou chegando aos 50 me sentindo melhor, mais inteira, mais bonita e com mais gana do que em qualquer outra fase da vida. E quero ter todo o tempo do mundo. Acho que vou ter que viver até os 100.
Comments are closed here.