O nódulo e as mudanças
Ela se encontrava sozinha, sentada na antessala do laboratório de imagens. Na verdade, havia mais um monte de mulheres que evitavam assunto e o olhar umas das outras. Todas com seus problema, cada uma com suas questões. Extremamente solitárias. A TV imensa exibia um programa matinal, definido por alguém como o entretenimento apropriado para donas de casa. O Ibope é alto, todo mundo anuncia, o dinheiro rola e os aparelhos ficam ligados nos lares, nas academias de ginástica, nos laboratórios… Todos assistem porque não há outro programa para se assistir, porque a senhorita “mediocridade”, metida em seu terninho de tergal azul marinho, sintoniza os canais e os restantes se deixam plantar defronte aos aparelhos sob efeito hipnótico.
Maria se sente incomodada. Ninguém gosta de ver casas melhores que as suas nem comidas mais elaboradas que as de casa. Até os problemas exibidos são muito mais sérios que os probleminhas medianos de quem assiste esses programas. Lá na TV, uma mulher que havia sido estuprada…. e Maria só estava ali para seus exames anuais. Perdia feio. Dona de casa quer ver outra coisa e não um espelho invertido, no qual, além de não se reconhecer, ainda se acha pior do que realmente é, pensava ela.
Súbito, ouviu seu nome. A mocinha lhe disse: “A senhora precisa voltar lá para dentro. A doutora quer fazer umas complementações no seu exame”. Para Maria, foi o mesmo que falar: “A senhora tem que refazer o exame porque a doutora acha que tem um câncer”.
Aperta o peito na horizontal, na vertical, de ladinho, não fosse uma tortura, ela diria que a narração da cena seria quase a de um filme pornô. “O resultado ficará pronto daqui a duas horas. A senhora vai esperar?” É claro que iria esperar, já perdera o dia mesmo…. Mas o que fazer em duas horas? Aquela TV, de novo, não!
Lembrou-se da exposição do Esch, no Centro Cultural próximo ao laboratório e partiu para lá. Uma viagem, não o caminho, mas a própria exposição. Inseriu-se nos desenhos, nos quadros, naquelas espirais, nas metamorfoses… Como queria se transformar em pássaros, borboletas, peixes….como desejava poder olhar para sua vida numa outra perspectiva…entrar por uma porta peixe, subir dez escadas meio sapo e sair por outra porta voando…duas horas passam muito rápido quando se tem alguma coisa errada dentro do corpo. Quando deu por si, Maria saiu correndo pela rua, o resultado do exame já devia estar pronto.
Abriu rapidamente o envelope e ficou zonza. Tinha um nódulo no meio do caminho. No quadrante inferior interno do seu seio esquerdo tinha um nódulo. O bicho estava escondido entre seu seio e suas costelas, tão perto do coração, pronto para dar o bote, com certeza! Chorou.
Agora ela tinha uma questão mais séria para se preocupar. Estava ganhando da cambada da TV. Tinha um caroço, um troço, dentro do seu seio. E, pior, tinha histórico familiar daquela doença maldita que ninguém ousava falar o nome. Perdera algumas pessoas da família com câncer, o que a colocava no grupo de risco. Agora, o caroço maldito devoraria suas entranhas. Quantos meses lhe restariam? Precisaria escrever um livro.
Pensava um turbilhão de coisas estranhas. Quando se rouba da gente a possibilidade do futuro, o que resta? Resta o presente, onde processamos o passado. Isso pode ser bom ou ruim, mas não nos move.
Automaticamente, ligou para o médico, que já estava indo embora do consultório. “Pelo amor de Deus, não vá. Eu chego aí em vinte minutos, o senhor precisa ver o resultado do meu exame”. Claro, disse ele, acalme-se, eu espero você chegar.
Sua cabeça pesava, as pernas não a obedeciam, ela não podia ir sozinha, o marido viajando…. Alguma de suas filhas poderia acompanhá-la, mas todas trabalham, como ela. Sempre fez questão disso: trabalhar. Mandou recado urgente pelo celular. A primeira que ligasse de volta seria a escalada. Assim foi. Uma das meninas a acudiu em tempo recorde e compartilhou com ela um táxi de angústias ancestrais. Maria, a filha e o nódulo chegaram ao médico e ela despejou todos os seus medos e anseios em cima dele.
A filha ficou assustada. E Maria se segurava pra não chorar de novo.
Médico é um ser paciente, é bom que se reconheça. Mas também, se não fosse, não poderia ser médico. Ele olhou tudo direitinho, explicou, desenhou, deu exemplos, mas não a convenceu de que não era um câncer. Então ele falou: “Vamos fazer uma mamotomia”. Ela, imediatamente, já se viu sem peito, com um sutiã de enchimento, igual ao da tia, que teve um problema sério há uns quarenta anos; ela era bem menina, mas se lembrava do sofrimento de todos. Tinha a convicção de que, quando vemos alguém que amamos sofrer, sofremos junto. Pelo menos, ela era assim.
O médico explicou como seria feita a biópsia: pequena incisão, monitorada por um ultrassom, blá blá blá que não ouviu direito.
Dias depois, estava no laboratório deitada de bruços, o peito esquerdo dependurado enfiado num buraco. Maria se sentia meio vaca amarrada para ordenha mecânica. A irmã e uma das filhas a acompanharam, mas as enfermeiras não permitiram que elas entrassem na sala de exame. Estava só. Uma mocinha (Maria pensava “porque são todos tão novinhos, meu Jesus?”) controlava tudo por um aparelho de ultrassom e então ouviu um barulho como de um tiro e pôde sentir uma coisa entrando em sua carne. Dor ela não sentia, porque lhe aplicaram uma anestesia local. Abriu a boca a chorar, pediu que a enfermeira lhe desse a mão. Quando criança sua mãe lhe dava a sua mão. Aí, todo o medo passava, porque elas estavam juntas. A enfermeira foi sua mãe naquele momento. A enfermeira disse que estava tudo bem e ela acreditou. Ela tinha que acreditar.
De volta à casa, ela só queria ficar deitada quietinha num canto, com seu nódulo, esperando o dia do resultado do exame. Pensava no que fazer no tempo que lhe restasse. Não sabia se autorizaria a mastectomia, melhor morrer inteira. Testamento, ela precisava fazer um, tinha livros, medalhas de Nossa Senhora, cachorros… chorou. Teria que deixar tanta coisa inacabada… Inclusive sonhos… Passou dias de lesma, rastejando e deixando uma gosma de tristeza por onde passava.
No dia de pegar o resultado do exame, fez questão de ir sozinha. Tinha que estar bonita no momento do veredicto. Optou por um vestido bege claro, reto, sapato creme e a bolsa cara e super linda com detalhes em rosa choque e coral. Estava vestida para matar, ou melhor, para morrer. Há que se morrer um dia, pero sin perder la elegancia.
No laboratório, pegou o envelope e foi para o jardim. Abriu e leu: “não há traços de malignidade…..”. Em menos de cinco segundos saiu pulando pela rua como quando sabia que estava grávida. Sempre comemorou a gravidez. Suas filhas eram um presente..
E o nódulo desocupou o lugar que ocupava, há meses, em seu coração e em sua mente e ela flutuou. Degustou esse momento sozinha na rua. Olhava as pessoas e sorria para elas. Percebia o mundo sob outro ângulo. Sentiu-se meio pássaro, meio lagarto ao sol, meio borboleta. Sentiu-se. Ligou para o marido, as filhas, a mãe, o médico, não necessariamente nessa ordem. Todo mundo comemorou. Foi muito bom mesmo.
Maria estava tão preparada para morrer, que a possibilidade de viver, por bom tempo ainda, lhe encheu de uma felicidade-menina que há muito não sentia. Atravessou a rua pensando em seu futuro. Olhou fixamente para uma árvore antiga e frondosa que se mantinha ereta e firme à sua frente e pensou: “toma o meu nódulo, alimenta com ele tuas raízes e, se você for uma árvore frutífera, que venham saborosos frutos; se for uma árvore dessas que dão flores, que venham com as cores mais fortes do mundo, capazes de impressionar a retina dos velhos e desmiolar de vez a cabeça dos jovens”. Sepultou seu nódulo benigno sob aquela árvore frondosa e voltou mansamente para casa. Havia meses de coisas a fazer. Maria tinha um bom trabalho pela frente.
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