“No ano passado, dei meu grito de liberdade”
Quatro mulheres e seus relatos de sobrevivência num encontro no conjunto habitacional Sargento Roncalli, em Belford Roxo.
Ainda não eram 8h da manhã, quando deixei a Via Dutra e cruzei o portal de entrada de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, a 35 Km do Centro do Rio de Janeiro. O município tem infraestrutura precária e quase meio milhão de habitantes. Como o objetivo era ouvir mulheres trabalhadoras, escolhi ir ao local num sábado, quando elas estão em casa cuidando das tarefas domésticas acumuladas na semana.
Meu destino era o conjunto habitacional Sargento Roncalli que se transformou num bairro de população de baixa renda, onde vivem empregadas domésticas, carteiros, motoristas de ônibus, policiais etc. São quilômetros de vias com prédios idênticos. A falta de lazer é compensada pela estreita convivência entre os vizinhos, que se tornam amigos.
Num pequeno edifício limpo e razoavelmente arejado, encontro a enfermeira Laudinéia dos Santos, a empregada doméstica Valdira Lima Santos, ambas de 55 anos, e as irmãs Sara Cristina da Silva, 54 anos, babá e cuidadora de idosos, e Elizabete da Silva Esteves, 52 anos, doméstica desempregada.
No começo da entrevista, garantem que nada mudou após entrarem nos 50 anos. Mas, à medida que a conversa avança, elas vão se dando conta de que passaram por uma revolução pessoal, com novos sonhos e paradigmas. No fim da entrevista, já se consideravam vitoriosas pelas mudanças.
Laudinéia: “Agora é a minha hora”
A enfermeira Laudinéia nasceu na Ilha do Governador (bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro), casou-se aos 18 anos, grávida, com um técnico em explosivos. Abandonou os estudos para trabalhar em uma loja. Aos 25 anos, tinha três filhos e passou por uma laqueadura de trompas.
Para ajudar no orçamento da família, fez curso de auxiliar de enfermagem e passou a dar plantões. A mãe a ajudava cuidando das crianças. Ela lembra que sofria com as saídas noturnas e com as agressões físicas do marido. Aos 38 anos, veio a separação. “Ele estava com outra mulher e foi embora. Foi um período de muitas dificuldades financeiras”, relata.
Alguns anos depois, quando os filhos já eram maiores, apaixonou-se por um barbeiro e foi viver com ele em Nova Iguaçu, município vizinho. Os filhos ficaram no conjunto Roncalli. Enquanto esteve com o novo marido, não trabalhou fora e aprendeu artesanato, que é sua segunda fonte de renda. O companheiro morreu em 2013 e ela voltou para o antigo endereço e retomou o trabalho de enfermagem.
No ano passado, matriculou-se no curso supletivo e estuda para fazer o Enem este ano. Sua meta é formar-se em pedagogia e realizar o sonho de ser professora, que deixou de lado quando era jovem.
“Agora é a minha hora! Penso em ter um novo companheiro, mas só depois que fizer o Enem. Estou num momento de transformação positiva e mais feliz”.
Sara: “No ano passado, dei meu grito de liberdade e parei de assumir a responsabilidade pelos atos dos meus filhos”
Sara Cristina da Silva teria todos os motivos para ser uma mulher amarga. Mas exibe uma alegria contagiante, evidenciada não só pelo riso aberto, mas pela profusão de enfeites espalhados por sua casa: plumas, flores, bandeiras e artesanatos feitos com objetos colhidos nas ruas.
Nascida em São João do Meriti (outro município da Baixada Fluminense) é a mais velha de seis irmãs e foi criada pela avó. A mãe a teve quando era solteira e o pai _ um “dois zeros à esquerda”- nunca a ajudou.
“Até os meus dez anos, vivi paparicada pela minha avó e pelas tias. Mas meu mundo de princesa acabou depois que meu pai apareceu e me convenceu a viajar com ele para Brasília. Depois que voltei, tive que comprar minha própria comida, e assim comecei a catar coisas nas ruas para vender”.
Casada com um motorista de ônibus, Sara tem dois filhos, que, depois de se tornarem pais, voltaram a morar com ela.
“Sempre fui mãezona e superprotetora. Eu vivia preocupada com medo que meus filhos fossem presos por não pagar pensão aos meus netos. Então, eu pagava. Mas isso acabou. Um dia, eu acordei. No ano passado, dei meu grito de liberdade e parei de assumir a responsabilidade pelos atos dos meus filhos. Agora, o problema é deles”.
Sara diz que sua prioridade imediata é consertar o telhado do apartamento, e que tem planos de viajar e “bater perna” com o marido.
Elizabete: “Espero ter mais prazer daqui por diante”
Elizabete, irmã de Sara, é uma morena bonita de olhos verdes e cabeça praticamente raspada. Sua história de vida se assemelha muito à da enfermeira Laudinéia. Começou a trabalhar aos 14 anos, como empacotadora em supermercado, engravidou do namorado aos 17, casou-se com outro rapaz , teve o segundo filho; separou-se e teve uma filha do terceiro relacionamento.
“Minha vida foi criar filhos e trabalhar, trabalhar e trabalhar”, diz Elizabete. Trabalhou, sem carteira assinada, por muitos anos, em padarias, mercados e casas de família, mas está desempregada e à procura de trabalho.
Segundo ela, com a crise econômica e as novas regras para contratação de empregada doméstica, ficou difícil arrumar emprego. “Ganha-se mais em casas de família do que em supermercado, porque o salário vem limpo (sem descontos). Mas, só acho oportunidade para trabalhar dois dias por semana, como diarista. Meu projeto pessoal é arrumar um emprego para me manter e começar a ter mais prazer”.
Valdira: “Meu marido era muito mulherengo, mas depois dos 50, o fogo dele baixou. Hoje não tenho do que reclamar da minha vida afetiva. Se ele me der uma patada, dou outra. Se me der um beijo, dou outro”.
Casada com um funcionário aposentado dos Correios, a sergipana Valdira Lima Santos é empregada doméstica, mas está em licença médica há três anos, por problemas na coluna. Além do marido, moram com ela o filho mais velho e um neto. Ela diz que começou a trabalhar aos 13 anos, como babá de gêmeos, em Sergipe. Quando se casou, aos 22 anos, ficou sabendo que o marido tinha um filho de dois meses e ela acabou criando a criança.
Aos 55 anos, ainda não entrou na menopausa e é a mais tímida e reservada do grupo. Diz que gostaria de ser desinibida, como a vizinha Sara, mas admite que não tem coragem de fazer o quer. Conta que foi trabalhar como doméstica depois de casada para poder sair de casa. Avalia que a vida afetiva melhorou depois que o marido se aposentou e passou a ficar mais com ela em casa. Ele sossegou, constata.
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