Nana Moraes, a fazedora
de sonhos
Na despedida, o abraço foi apertado demais. Peço desculpas porque momentaneamente me esqueci que, na euforia do encontro mágico, excedi na força. Ela diz que é melhor sentir um pouquinho de dor do que ficar sem um abraço. Nana Moraes é assim. Os olhos brilham por detrás dos óculos de grau, o cabelo curtinho de moleca e um sorriso que encanta. Baixinha, o aparente corpo frágil esconde uma força de criação onde a fotógrafa se encontra com as artes plásticas, o bordado, a colagem, a dramaturgia, a escrita e outros caminhos criativos que a sua imaginação ainda vai levar.
O casarão numa ladeira da Glória é um parque para os olhos curiosos. Na entrada, o pé direito alto recebe o visitante que se deslumbra com os tijolos aparentes, as fotos expostas num trabalho que foi composto com tinta acrílica, mostrando as Andorinhas, as mulheres da vida, as putas, o mergulho na alma de mulheres guerreiras que foram eternizadas com fotos comoventes, chocantes, impactantes. Um trabalho que virou também livro com texto e fotos de Nana.
Ela está no estúdio e descemos degraus, para encontrar uma criadora de sonhos que mostra com orgulho o espaço onde vai funcionar o seu “mini Parque das Ruínas”, o Retrato Espaço Cultural, onde haverá projeções, exposição, galeria, café, gruta com instalação onde São Jorge que vai receber também os outros santos de devoção de convidados. As paredes estão nuas, pedaços de construção, onde raízes se entranham pelos tijolos e as folhas teimam em brotar no meio do cimento, concreto e tijolo. É um deslumbre.
Nana fala aos borbotões. Desde a decisão de usar parte do terreno, onde instalou seu estúdio e vai abrir um novo espaço no Rio, no segundo semestre, para as artes até o seu trabalho que está sendo gestado desde 2011: a maternidade e as presidiárias. Uma relação delicada, um projeto acalentado durante anos de conversa com autoridades e presas. O resultado mistura várias habilidades desenvolvidas pela fotógrafa de 54 anos, dois filhos e três netos durante a recuperação do tratamento de um câncer.
Das mãos calejadas, de dedos finos e longos, sem esmalte, de unhas curtas, brotaram bordados, telas que foram incorporadas ao trabalho de fotografia. Na tela do computador, ela apresenta uma sequência do que virá. O trabalho com as presas ganhou corpo em 2015 e faz parte de uma trilogia que iniciou com o Andorinhas.
Nana diz que a maturidade trouxe mais segurança para fazer seus projetos. E ela tem vários. A seguir, alguns tópicos da nossa conversa que foi regada a café, água e muitas doses de risadas.
O ESPAÇO CULTURAL – “No momento em que os espaços culturais estão sendo fechados, que a cultura está sendo asfixiada, resolvemos abrir o local que é super aconchegante. A ideia surgiu de uma conversa com meu filho Ricardo. Estou pensando em chamar grafiteiros para grafitar o chão, ficar uma coisa bacana”.
REDES SOCIAIS – “Eu tinha medo de entrar nas redes sociais. A maledicência humana me atinge demais. Mas com o negócio da Associação (de fotógrafas) eu acabava perdendo os informes, as datas das reuniões. A Marizilda (Cruppe) me falou ‘você tem que entrar”. Minha assistente me ajudou a fazer e eu entendi que poderia usar a ferramenta ao meu favor. Hoje eu coloco meu trabalho na rede.”
MANIFESTAÇÃO DAS MULHERES – “Eu fiz uma cobertura para o dia 8 de março sobre um plantão na delegacia de mulheres, para registrar essa violência. Conheci pessoas como a Vanessa, que foi espancada pelo marido com um pedaço de madeira com pregos.”
PRESAS – “Depois do Andorinhas eu pensei na sequência que faria parte da trilogia que eu chamo de “Desamadas”. Queria discutir o universo dessas mulheres invisíveis da sociedade, que não são visíveis, que são rechaçadas. Daí eu tive a ideia em 2011 e desde então venho tentando autorização para fazer os trabalhos junto à secretaria da SEAP. Consegui, em 2015, depois de duas tentativas, para fazer o trabalho. Eu não queria apenas entrevistar, queria ir além. Antes de começar eu li tudo sobre presídio. Fiz uma imersão no assunto, como sempre faço para um trabalho. “
DAR E RECEBER – “ Eu saquei que se não desse nada em troca, seria apenas uma pessoa curiosa e não conseguia a cumplicidade. É importante para você dar uma coisa em troca. Eu sei que o fato de eu fotografar lá já é uma coisa legal, de querer mostrar o universo dela, mas eu queria dar uma coisa em troca e então criei o projeto Travessia, em que eu estabelecia uma correspondência fotográfica entre a mãe presa e o filho fora da cadeia. Elas não recebem visitas, elas são esquecidas de fato por muitos motivos. Um deles é o fator econômico. Alguns filhos não têm dinheiro para visitar essas mães. Outras não querem que os filhos passem por constrangimentos ao visitar na cadeia. “
MINUTO DE LIBERDADE – “Eu criei um espaço para plottar um céu, fotografei a mãe na frente desse céu porque eu queria que essa foto tivesse o significado de um minuto de liberdade, sem grades. Eu queria que o filho visse a mãe dessa forma. O projeto começou com 17 mulheres e terminou com 6, com as que as famílias autorizaram. Além da correspondência fotográfica, a gente mandou pelo correio as fotos. O material ficou incrível. Eu quero transformar essa história que tenho em áudio, vídeo, texto e foto em uma exposição, um livro.”
BORDAR, FOTOGRAFAR – “Lembrei que minha sogra me deu um livro sobre as arpilleras (técnica têxtil chilena usada por um grupo de bordadeiras que faziam trabalhos contando o que acontecia na ditadura. A folclorista Violeta Parra ajudou a difundir o trabalho artesanal em outros países). Resolvi então fazer peças bordando palavras, frases: colcha, manta, tolha de mesa, de banho, cortina, um cobertor. Eu usei as fotos dos filhos e bordei sobre a fotografia. Eu não sou bordadeira, mas eu queria fazer isso para elas. Usei os pontos cadeia e ponto atrás, que ficou mais parecido com o ponto corrente. Eu faço trabalhos manuais para os meus netos, não tenho técnica. É mais intuitiva.”
CÂNCER – “Quando eu tive câncer, em 2011, comecei a fazer muita coisa para minha neta como um teatro de marionetes. Quando estava me recuperando eu pensei em levar esse teatrinho para as crianças no INCA. Montei uma história de um jegue que queria um dono, porque lembrei que numa viagem ao Ceará vi muitos jegues soltos e soube que eles ficam assim, sem dono. Então criei a peça, onde o personagem falava “eu queria tanto um dooooonnnnnooo”, assim como o jeito do jegue relinchar. No final, as crianças imitavam esse som. “
DOR – “Por conta da quimioterapia eu fiquei com algumas sequelas. Me chateia muito é que alguns médicos não reconhecem quando um paciente relata uma dor que sente. Uma amiga me disse que nós não nascemos para sentir dor. Penso que a doença tem um lado terrível, mas também te faz rever muita coisa. Uma delas foi rever esse espaço enorme que eu tenho aqui e que tem tanto potencial.”
MUDANÇA AOS 50 – “Mudou a minha segurança. Eu fiquei mais segura. Eu fui mãe muito jovem e então aos 50 eu já era avó. Me deu uma sensação de missão cumprida. Aquela coisa de “o que eu tinha que fazer pelos outros eu já fiz. Agora eu vou fazer por mim”. E fazer por mim não quer dizer fazer para o meu umbigo, é fazer os meus projetos. Eu tive câncer aos 48, lancei um livro na mesma época e isso foi um marco na minha vida. “
ESCREVER – “Eu entrei na PUC de São Paulo porque eu queria escrever, eu não pensava em ser fotógrafa. Meu irmão e meu pai fotografavam. Eu fui trabalhar como assistente do meu pai e acabei virando fotógrafa. Eu sempre fiquei frustrada por não escrever. Até tentei fazer com as revistas femininas onde publicava minhas fotos, mas elas (editoras) não confiavam em mim. Eu também procurei um professor de literatura quando resolvi escrever o livro (Andorinhas). Submeti os textos, fiz e refiz. Enfim, eu tive coragem. Acho que a maturidade te dá essa coragem de se expor, botar para fora isso. Antes de publicar tudo eu mostrei o trabalho para fotógrafos e eles falavam que isso não era fotografia. Mostrava para artista plástico e eles falavam que isso não era arte plástica. Eu não agradava nenhuma parte e quando fui escrever, ouvi de várias pessoas “escreve aí que depois eu dou para alguém consertar”.
AMOR – “Estou com o Carlos há mais de 20 anos. A gente é amigo de infância, fomos muito ligados dos 11 aos 14 anos. Depois fui morar em São Paulo, tive meus dois filhos e, após a separação, voltei ao Rio. A gente se reencontrou e estamos juntos”.
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