Mulheres de Pedra, um resgate da ancestralidade
A casa é simples, como as casas de subúrbio, com uma mangueira centenária, frondosa, e um caminho ao lado de um jardim que leva a uns degraus para se chegar a uma varanda. Do alto, uma mulher exuberante nos recebe. Parece uma rainha africana pelo porte, pelo olhar sereno e altivo, pelo cabelo arrumado que lembra uma coroa natural, grisalha. Ela está com roupas simples, mas isso é um detalhe, porque sua presença enche o ambiente. Leila Souza Netto, de 62 anos, é pedagoga e coordenadora do coletivo feminino “Mulheres de Pedra”. O espaço funciona há 15 anos em Pedra de Guaratiba, na Zona Oeste do Rio, perto do píer e do polo gastronômico. Ali, ela e o marido, o artista plástico Sergio Vidal, desenvolvem atividades culturais e de valorização da cultura negra.
No início, Leila e outras mulheres criaram o espaço para reunir artistas plásticos da região. A principal inspiração foi a artista Dora Romana, já falecida, que incentivou a produção de arte em quadrados de pano, que depois eram unidos e transformados em colchas de retalhos, grandes painéis. Um desses painéis temáticos mostra as Yabás, que significa Mãe Rainha e é o termo dado aos orixás femininos Yemanjá e Oxum. No Brasil, esse termo é utilizado par definir todos os orixás femininos. Pela casa, estão espalhadas ainda outras peças feitas em pano, em madeira, em metal. Arte por todos os cantos.
Um outro trabalho do coletivo foi realizado em outubro de 2015, “Territórios da Fé…meninas ninadas do ventre poético do manguezal”, que reuniu 60 pessoas num fim de semana para gravação de um curta e ganhou o prêmio Geraldo Jordão Pereira, do Instituto Rio. Outro curta realizado pelo Mulheres de Pedra é “Elekô” , ganhador de quatro prêmios no Festival 72 horas Rio 2015, incluindo melhor filme e direção (https://www.youtube.com/watch?v=EdcguHwyY_Y) . O caminho do cinema é apenas um dos muitos atalhos que Leila percorre para fortalecer a identidade cultural negra.
Cheia de projetos, Leila está sempre em busca de fazer “costuras” no território feminino, dando visibilidade para a mulher negra. “Nós estamos costurando com outras mulheres as questões do nosso universo feminino, do nosso cotidiano, o nosso fazer cultural, social e político. É uma grande costura que a gente vai fazendo com as mulheres da comunidade, com as mulheres do entorno da comunidade e as de fora também”, diz Leila. Para ela, essa luta acontece no “fazer diária”, em parcerias, trabalhando com outras mulheres.
Quais são as questões que mais afetam quando você está fazendo a sua colcha?
Leila – Esse trabalho mexeu muito comigo, me tocou e me ensinou muito sobre a questão das vaidades, dos egos, dos egoísmos, da falta de colaboração. As questões mais de valores éticos e morais do ser humano que não sabe dividir, que não sabe compartilhar. Além de todas essas questões mais éticas e de valores, hoje o que me preocupa é a construção da identidade racial, da identidade feminina. É isso: precisamos costurar muito o racismo, o nosso feminino, o nosso fazer cultural, a nossa visibilidade, a nossa autonomia. Essas são as costuras que a gente precisa fazer o tempo todo, costurando diariamente daqui para frente e compartilhando um pouco esses saberes dentro dessa costura.
Como você costura a visibilidade de uma mulher com mais de 50 anos, negra, à frente de um projeto onde você fala o tempo todo em solidariedade?
Leila – A visibilidade é no fazer. Só fazendo. Não adianta querer ter visibilidade fechada dentro de casa ou fechada dentro do seu próprio projeto, do seu próprio fazer cotidiano. Não é dentro de casa: é saindo, rompendo e quebrando as barreiras diariamente.
Qual a barreira mais difícil de quebrar?
Leila – A da visibilidade. Primeiro, a gente sabe que as mídias que estão aí nunca vão favorecer a gente, elas nunca vão falar da gente e dar visibilidade. Essa é a grande barreira. Então, o caminho é trabalhar outras mídias sociais que estão aí, fortalecendo e estando nessas mídias que estão dentro da comunidade. Essas comunidades já estão trabalhando essa comunicação social de uma forma muito bacana. Têm coletivos falando como nunca de dentro de suas comunidades. A gente está em todas as frentes, está indo aos pouquinhos, empurrando, a gente vai rompendo aos poucos e nada está acabado, nada vai ficar acabado. Eu acho que estamos em todas as frentes e isso é muito forte.
Você falou que não é ficando em casa que as coisas acontecem, mas sabemos que às vezes dá um imobilismo em algumas pessoas ou, ao contrário, dá um gás para fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Como foi para você fazer 50 anos?
Leila – Eu já estava no pique antes dos 50. Eu sempre falei que seria um renascer, que após os 50 eu iria renascer em várias questões e a cada dez anos eu me parabenizo. Os 50 dá uma maturidade, uma visão mais política, mais social, mais cultural, mais a minha identidade.
Você resgatou a sua identidade ou você reafirmou a sua identidade?
Leila- Eu resgatei e reafirmei. E continuo nesse trabalho. Eu resgatei porque eu não era aquela mulher que está lavando, cozinhando. Eu resgatei que poderia querer ser, construir, estudar. Então isso é um resgate que dá toda a liberdade.
Você não era mais aquela mulher que ficava cozinhando? Eu não consigo te enxergar assim.
Leila- (risos) sim. Eu fiz, talvez, uma colocação ruim. Eu estava pensando em outras mulheres. Eu sempre penso no outro. Eu não consigo me ver falar só de mim, para mim, é muito difícil falar só de mim. Eu sou um coletivo o tempo todo. Eu não sou sozinha. Eu não consigo viver sozinha em nada.
Você é artista plástica, pedagoga. O que você é exatamente?
Leila – Sou pedagoga porque passei por uma academia, fiz meu curso, mas hoje eu me reconheço como educadora social popular. Eu falo como a maior certeza. A diferença é que uma educadora popular vivencia, ela vai, ensina e aprende o tempo todo. É uma troca de ensinante e aprendente. É o tempo todo. Não tem aquela cultura de que eu sei e vou ensinar. Não. Eu vou conhecer, aprender, vivenciar e experenciar. E aí eu posso trocar. Essa é a grande diferença.
O que você aprendeu?
Leila – Aprendi a ser um ser humano mais positivo, um ser humano melhor, mais compreensivo. Eu cresci em vários aspectos nessa minha caminhada. Eu trabalhei durante 12 anos no curso de uma escola que era ministrado por mim, em Campo Grande. Eu peguei uma franquia então eu trabalhava com jovens e adultos. Mas esse trabalho não me fazia feliz em parte e me causou problemas. Primeiro, porque eu não sou administradora, essa não era minha área. Eu gosto mais de estar em sala de aula do que administrando.
Como você chegou em Pedra?
Leila – Há 35 anos esse foi o nosso espaço, nossa residência. Eu ia diariamente a Campo Grande. Minhas duas filhas Lívia e Thais foram criadas aqui. Foi uma opção de vida estar em Pedra de Guaratiba, já tinha morado em outros lugares. No começo foi fácil. Com o tempo fui entendendo melhor o lugar e hoje elas (as filhas) agradecem por terem sido criadas aqui. Vivo com meu marido, sou casada há 45 anos com o mesmo homem. Hoje essa relação tem uma amizade muito forte, respeito, muito afeto. É claro que não dá para falar que é perfeito. Eu falo às vezes “senta aqui, vamos falar agora”. Não gosto de deixar passar uma coisa que me incomoda, resolvo logo. O bacana de uma relação é falar o que gosta ou não. Isso tem a ver com a maturidade.
Você tem um protagonismo muito forte, você toca um projeto bonito e como você se sente no centro dessa atenção?
Leila – Eu nunca consegui me ver assim. Eu sempre tenho essa sensação de não ter feito tudo que podia, tudo que devia, mas eu não fico me cobrando tanto agora. Deixo que os outros falem e percebam. Hoje eu estou me acalmando mais.
Você acaba sendo exemplo para outras mulheres…
Leila – É acordar acreditando que só por hoje é possível fazer coisas. Fazer e arregaçar a manga. E se amanhã tiver uma outra oportunidade, continuar fazendo e não desistir. É importante fazer planos a médio e a longo prazo porque a gente tem alguns objetivos e metas também para alcançar. Esse espaço do Mulheres de Pedra não é meu. Eu não quero nada para mim. O que me deixa muito feliz é esse abrir caminho, compartilhar. Tocar as questões do território feminino que estamos trabalhando a partir da literatura, do áudio, do cinema, do vídeo, da dança, da poesia.
Como você lida com as questões de racismo?
Leila – De uma forma mais tranquila. Eu sei quem eu sou, eu me reconheço como mulher negra e aí tem o meu lugar bem definido. Já tive problemas, mas hoje a minha caminhada de identidade de mulher é muito forte. E para o jovem que não chegou nessa maturidade, a gente tem feito um trabalho para aprofundar essas questões e participar dentro dessa comunidade nessa construção da identidade de cada jovem. Esse trabalho tem tido resultado. Vejo os jovens se reconhecendo, aceitando o cabelo, se sentindo lindos. Dentro da comunidade eu percebo a mudança tanto das meninas quantas das mulheres com seus cabelos naturais. Uma das formas de tratar esse assunto foi fazer uma oficina de trança terapia, trançando o cabelo e elas ouvindo sobre economia solidária, o que é ancestralidade, ouvindo o que é tratar do cabelo, do nosso cabelo superbom, de se sentir superlinda, como se tratar melhor. A gente trança um caminho solidário através da trança terapia.
Você sempre deixou o seu cabelo assim, natural?
Leila – Quando minha mãe me levava no salão para alisar eu chorava, xingava, brigava e ficava me sentindo horrível com aquele cabelo alisado porque não queria. Eu gostei do meu cabelo nos anos 70. Eu era muito rebelde e andava de cabelo black power e descalça. Eu tinha uma amiga que morava no Jardim Botânico e me chamava para festas na casa dela e ia assim. Eu tenho orgulho de ser uma pessoa negra. Eu vejo que sempre fui uma pessoa muito livre, sabendo o que queria e minhas filhas são assim também. Não alisava o cabelo delas. A gente ficava na varanda, eu trançando os cabelos delas e cantando músicas da MPB.
E o seu cabelo grisalho?
Leila – Eu pintava até dois anos atrás. Depois eu parei e ficou aqui a minha coroa branca (no alto da cabeça) e o resto era pintado. Quando cheguei aos 60, vi que queria a liberdade. Estava com trança até a cintura e cortei na altura dos ombros e fui cortando. Os brancos já estavam enormes e deixei até a cabeça toda ficar branca. Agora estou assim.
Debaixo da mangueira, Vidal ensina a arte da carpintaria a três meninos, Leila observa e ri. A vida seguindo o rumo do compartilhar.
Leila fala da visibilidade das mulheres com mais de 50 anos em vídeo de Ana Lúcia Araújo:
Leila fala dos propósitos do coletivo em vídeo de Ana Lúcia Araújo:
Algumas pontuações necessárias, o texto expressa vários preconceitos, e muita insistência e necessidade de uma afirmação de empoderamento de alguém que pouco ou nada conhece da experiência racial, querendo construir uma caricatura.
Uma pena, ficou pobre e apesar de querer ser anti-racista imprime um tom bastante contrário.
“A casa é simples, como as casas de subúrbio” (essa frase reforça os esteriótipos negativos, e reverbera o preconceito territorial que marcam o Rio de forma brutal)
“Ela está com roupas simples, mas isso é um detalhe, porque sua presença enche o ambiente.” (Que julgamento é esse? ‘mas’ – qual o critério de moda, de estar a vontade em sua casa, de receber alguém de forma leve)
“artista plástico Sergio Vidal” (artista plástico reconhecido internacionalmente com obras no museu de Boston e etc)
“Eu era muito rebelde e andava de cabelo black power e descalça. Eu tinha uma amiga que morava no Jardim Botânico e me chamava para festas na casa dela e ia assim. Eu tenho orgulho de ser uma pessoa negra.” (Leila cresceu no Jardim Botânico, viveu lá a vida toda, o texto parece no mínimo racista por dar a entender que ela, que certamente afirmou ter vivido lá, não poderia viver lá, frequentava como uma intrusa)