Histórias de luta contra o machismo na igreja
Bispa e pastora contam as resistências que enfrentaram em suas trajetórias como líderes religiosas para ocupar funções que ainda são vistas como prerrogativas dos homens.
Em maio, o Mulheres50mais deu início a uma série de reportagens “Mulheres de Fé”, assinada por Elvira Lobato, sobre o dia a dia de mulheres que se dedicam à vida religiosa. A proposta era entrevistar religiosas de diferentes denominações, para mostrar como elas conciliam essa vocação com os desafios da vida após os 50, que incluem mudanças hormonais e efeitos físicos e psicológicos da menopausa. Tão envolvidas em sua profissão de fé e com o olhar atento próximo, como essas mulheres exerceriam sua individualidade nesse momento da vida?
Na estreia, foram apresentadas as histórias mães de santo Rosani Jardim (mãe Nani) e Deise da Conceição (mãe Deise). Nesta segunda reportagem, Elvira nos traz duas religiosas da denominação evangélica: a bispa Marisa de Freitas Ferreira, da Igreja Metodista no Rio, e a pastora Zenilda Reggiani Cintra, da Igreja Batista de Taguatinga (Distrito Federal). Elas contam como enfrentaram preconceitos ao longo de sua trajetória e como viveram seus dramas pessoais.
Até iniciar esta reportagem, confesso que tinha uma certa resistência em relação às mulheres evangélicas. Por desconhecimento, eu as considerava, de forma generalizada, conservadoras e submissas. Mas, ao conhecer a bispa Marisa de Freitas, da Igreja Metodista do Brasil, e a pastora Zenilda Reggiani Cintra, da Igreja Batista de Taguatinga, o preconceito deu lugar à admiração.
Fui surpreendida pela trajetória dessas duas mulheres que enfrentaram o machismo em suas igrejas tradicionais e ocupam funções que ainda são vistas em seu meio como prerrogativas dos homens.
A bispa Marisa coordena 79 templos metodistas no Nordeste. Nascida em Teófilo Otoni, em Minas Gerais, ela tem 55 anos e, além de graduada em teologia, formou-se em medicina pela Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública, de Salvador, e estudou três anos e meio de psicanálise. Um de seus projetos é ser psicanalista.
Entrevistei a bispa durante uma viagem que ela fez ao Rio de Janeiro para um evento regional de mulheres evangélicas. Como não havia espaço em sua agenda, fui encontrá-la em um restaurante em Santa Cruz da Serra, bairro do município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, onde almoçava em companhia de pastores que atuam na periferia.
Na Igreja Metodista, os bispos não são vitalícios, como na religião católica. Eles são eleitos em um conclave nacional, por cinco anos. No fim do mandato, caso não sejam reeleitos, retornam à função de pastor.
“Cada eleição minha foi um milagre”
Marisa foi a primeira bispa eleita da Igreja Metodista no Brasil e acaba de ser reconduzida para seu quarto mandato. O concílio que a reelegeu foi realizado no início de julho e escolheu mais uma mulher para o colegiado de bispos.
A Igreja Metodista é dirigida por um colegiado de dez bispos. Portanto, com a eleição da segunda bispa, as mulheres passaram a representar 20% do colegiado. Mas, engana-se quem pensa que elas tiveram uma ascensão tranquila.
“Há resistência à ascensão da mulher dentro da igreja. Cada eleição minha foi um milagre permeado pelo trabalho de mulheres metodistas e de outros grupos sensíveis à causa. Mesmo pessoas intelectualmente preparadas e com discurso de gênero, na prática, não acreditam que mulheres tenham capacidade de gerência. É um machismo intrínseco. Como não temos uma referência histórica de bispas, estamos numa lenta construção ”, diz Marisa.
Acostumada à formalidade e pompa dos bispos católicos, me surpreendi com a franqueza com que ela fala sobre seus sofrimentos e seu aprendizado de vida, que coincidiram com a virada dos 50 anos de idade.
Marisa não aparenta a idade que tem. Pequena e delgada, ainda usa aparelho corretivo nos dentes, o que acentua o aspecto jovial. Na medida em que conta sua história, porém, vê-se que a fragilidade é apenas aparente.
Divórcio e depressão
Ela diz que a passagem pelos 50 anos foi marcada por grandes mudanças e aprendizados. Aos 47 anos, decidiu encarar a derrocada de seu casamento e pediu divórcio. Sua decisão foi um choque para a igreja, porque o divórcio ainda é um estigma no meio evangélico.
“O divórcio, para mim, significava uma frustração, um projeto que deu errado. Além do preconceito social, tinha o meu próprio preconceito. Eu não tinha me casado pensando que pudesse me divorciar. E, por ser uma bispa, o fim do casamento era ainda mais incompreensível, mas concluí que mesmo não sendo alvo, o divórcio por vezes é necessário e, em situações específicas, é um caminho de favorecimento à vida”. Paralelamente, havia um outro problema pessoal e familiar: a depressão, dela e da filha.
No auge da dor do divórcio, ela diz que encontrou forças no Evangelho. “Um dia, orando, eu abri a Bíblia aleatoriamente e me deparei com a seguinte frase do profeta Oséias : nunca mais você será chamada desamparada nem humilhada. A partir daquele momento, me aceitei divorciada.”
O fato de ser médica ajudou-a entender a depressão como uma doença e a buscar tratamento na psicanálise, superando o sentimento de culpa pela depressão da filha que, no vigor da juventude, e apesar de todos os cuidados com que era cercada, deu cabo à vida, no ano passado. Marisa conta que sua convicção religiosa foi fundamental para superar a dor, e seguir em frente.
Ela diz que a virada dos 50 anos lhe trouxe maturidade, leveza, abertura para fazer amigos e lhe ensinou a pedir a ajuda aos outros e a relativizar os problemas. “Digo que ganhei dois amigos: “tonem” e “quico”. “Tonem” aí e “quico” eu tenho a ver com isso? Pode parecer banal, mas é uma forma de mostrar, brincando, que já não ajo pelas pressões externas, mas a partir do que sei, diante de Deus, que deve ser feito. Foi também a partir desta convicção, aprendi a lidar e a assumir a doença depressão.”
“As dificuldades por que passei foram uma maneira de Deus me dizer que ama as pessoas em qualquer situação. Ele não exige perfeição. Meu papel é anunciá-Lo para as pessoas que estão escondidas pelos cantos, carregando um peso de vergonha pela depressão ou por estarem divorciadas. Falo publicamente que faço terapia e não escondo de ninguém que minha filha se matou, vítima da depressão. Posso não ser padrão para boa parte da sociedade evangélica, mas o sou para as exigências da Graça de Deus. Ele me honra e me acata, mesmo não sendo uma pessoa padrão”, diz ela.
A pastora blogueira e a revolução feminina
Zenilda Reggiani Cintra, pastora da Igreja Batista de Taguatinga (DF) também surpreende por sua luta pelo direito de ascensão da mulher na estrutura da igreja. Com 58 anos, é formada em teologia, letras (português e literatura) e em jornalismo. A voz mansa e o semblante sereno não se alteram nem mesmo quando ela relata as adversidades que enfrenta para ser reconhecida como pastora pela cúpula de sua igreja.
Em abril de 2004, aos 47 anos, ela foi consagrada pastora por uma igreja batista de São Paulo, mas a seccional da Ordem dos Pastores do Brasil no Estado não reconhece a ordenação de mulheres. Mais tarde, ela mudou-se para Taguatinga com o marido e foi aceita pela igreja local como pastora. No entanto, a Ordem dos Pastores do Distrito Federal, à qual sua atual igreja se subordina, também não admite a ordenação de mulheres.
Sem se conformar com reação dos conservadores, ela criou um blog em defesa da ascensão da mulher. “Estamos numa fase de revolução feminina na igreja. Me tornei uma líder informal deste movimento”.
Entre os batistas, quando os homens concluem os estudos de teologia são ordenados pastores e encaminhados para dirigir uma igreja. Mas o mesmo não acontece com as mulheres. Segundo Zenilda, elas sempre tiveram oportunidades de trabalho, mas não como pastoras. Por causa de sua formação em letras e jornalismo, trabalhou por vários anos no setor de comunicação da igreja, por exemplo.
Depois que se casou com um pastor, acompanhou o marido para o interior de São Paulo e chegou a ser funcionária da Caixa Econômica Federal para ajudar no orçamento da casa. Mas não se sentia profissionalmente realizada. Alguns anos depois, quando o marido foi transferido para São Caetano, na Grande São Paulo, ela voltou a trabalhar com comunicação, não apenas para a igreja Batista, mas também para a Metodista.
Aos 40 anos, passou a dedicar todo o seu tempo a auxiliar o marido na igreja e começou a ser chamada informalmente de pastora pelos fiéis. Até que, em 2004, foi oficializada na função pela igreja de São Caetano. Mas sua luta para ser reconhecida pela Ordem dos Pastores estava apenas começando.
A Igreja Batista tem cerca de 13 mil pastores no Brasil, dos quais cerca de 230 são mulheres. E destas, só 50 pertencem à Ordem dos Pastores do Brasil.
A Igreja Batista se estrutura administrativamente de forma parecida com os advogados. Há uma representação nacional, mas cada Estado tem autonomia para aceitar ou não a ordenação de mulheres. Estados importantes, como Minas, São Paulo e o Distrito Federal resistem ao avanço. Em 2014, por exemplo, a seção de Minas Gerais rejeitou a ordenação de mulheres por 94% dos votos. Alguns Estados, como Rio de Janeiro, Paraná e Ceará já aceitam.
Rede de pastoras
Zenilda usou sua experiência de jornalista para lutar pelo reconhecimento das pastoras. Sua primeira iniciativa foi criar um blog para disseminar suas ideias. Rapidamente, o trabalho surtiu efeito. Ela conseguiu reunir pastoras que trabalhavam no anonimato para não provocar a ala conservadora.
“Descobri que as pastoras lutavam sozinhas e estavam espalhadas. Agora temos um grupo de 80 que se fala pelo Whatsapp, e fizemos nosso primeiro congresso, em 2015, no Rio de Janeiro.”
A experiência na edição de jornais e revistas da igreja rendeu a Zenilda um bom trânsito entre as lideranças religiosas, mas isso não facilitou sua reivindicação.
“Antes de ser consagrada pastora, eu era vista como prodígio pelos dirigentes da igreja. Diziam: a Zenilda tem tanta iniciativa que parece uma pastora. Agora, os mesmos que me achavam um prodígio perguntam: como ela quer ser pastora? Passei a ser vista como rebelde por um segmento importante da igreja. Até hoje, há líderes que pensam que eu vim para bagunçar a denominação.”
Ela admite que precisou quebrar suas próprias resistências para se tornar pastora e que o apoio do marido (o pastor Fernando Cintra) foi importante na sua luta. “Cresci em um ambiente em que não havia mulheres pastoras. Precisei vencer minhas barreiras internas para admitir para mim mesma que poderia ser pastora porque Deus não faz diferença de gênero”, conclui.
Meu respeito e admiração a Elvira Lobato por sua consciência quanto a nossa vivência de mulher. Parabéns pela iniciativa deste tema abordado. Vc é inspiração pra nós.
Minha admiração e respeito à Zenilda, por sua postura de fé e coragem. Uma outra inspiração pra nós, mulheres e homens, quer cristãos/as ou não.
Parabéns pela matéria!