Atrás das grades, o drama do abandono
Presas com mais de 50 anos são “invisíveis”. Sem perspectiva de futuro, vivem em universo onde a maioria das mulheres tem menos de 30 anos e na maioria dos casos vivem abandono familiar.
“Estou mais chorona. Eu queria ver ele. Mando carta, mas nunca respondeu” — M., 51 anos, referindo-se ao filho que nunca a visitou.
A invisibilidade e a sensação de abandono da mulher mais velha foi o que mais chamou minha atenção ao visitar a Penitenciária Talavera Bruce, no Complexo Penitenciário de Bangu, na Zona Oeste da cidade, para esta reportagem do Mulheres50mais. Trata-se do principal presídio feminino do Estado do Rio e lá estão 367 mulheres, das quais 37 têm mais de 50 anos.
O Brasil tem cerca de 38 mil presas. Metade delas conta entre 18 e 29 anos; 18% estão na faixa dos 30 a 34 anos e 21% têm entre 35 a 46 anos. Daí aos 60 anos, somam 10%.
Como jornalista, eu já havia estado outras vezes no presídio, mas sempre em ocasiões festivas, nas eleições da “Miss Talavera Bruce”, quando as presas mais bonitas se exibem maquiadas e com vestidos longos, sob os aplausos de visitantes e dos assovios dos “rapazes” da cadeia, ou seja, de presidiárias transgêneres.
Desta vez, fui ao encontro do Talavera Bruce “real” sem os holofotes da imprensa e sem o clima de festa. Meu objetivo, ao lado da fotógrafa Ana Lúcia Araújo, era descobrir como a travessia dos 50 anos é percebida pelas mulheres que foram julgadas e condenadas por crimes e que cumprem sentença em regime fechado.
A conclusão é de que quase ninguém dá atenção a elas e outra queixa frequente é de abandono da família. O foco está nas jovens, muitas presas por tráfico de drogas, crime geralmente praticado em parceria com companheiros, namorados ou maridos.
A direção do presídio me apresentou quatro mulheres que se dispuseram a contar suas histórias. As entrevistas aconteceram em um pátio, sem outras presas à vista. Para preservar a privacidade das entrevistadas, optamos por trocar suas identidades nesta reportagem.
Como é o dia a dia dessas mulheres? Em que medida o isolamento afeta a maturidade e a caminhada para o envelhecimento? Como a passagem pelos 50 anos as impacta?
As respostas para estas perguntas saem com dificuldade. Os muros que cercam o presídio também bloqueiam a capacidade de comunicação das detentas. Antes de entrevistar as presas, conversei demoradamente com a diretora, Bárbara Cristiane de Oliveira, que assumiu o cargo em setembro de 2015. A anterior foi afastada depois que uma presa deu à luz na solitária, sem assistência. Bárbara tem 43 anos, e chama a atenção pela vitalidade e pelo porte físico: loura, alta, vestia calça legging preta e escarpins de salto. É evangélica e formada em Letras.
A primeira coisa que notei no presídio foi a sala da diretora, decorada com uma profusão de flores, forros de crochê, caixinhas e outros apetrechos produzidos pelas presas. A cor predominante é o rosa pink. “Adoro rosa!”, justificou a diretora. Várias presas produzem artesanato para venda, disse ela.
“Comando Azul”
Antes de passar a palavra às presidiárias, vamos conhecer um pouco mais sobre a diretora do presídio. Ela foi admitida no sistema penitenciário por concurso público, há cinco anos, e é inspetora classe 2. Passou por várias funções, antes de chegar à direção. “Eu conheço a cadeia. Sei quando a presa mente ou fala a verdade”, afirma.
Segundo ela, 80% das detentas foram condenadas por tráfico de drogas, mas muitas eram apenas “buchas” e “mulas”, jargão policial que define aquelas pessoas que são usadas pelos traficantes para transportar drogas.
“Acredito que estas podem reconstruir a vida quando saem da prisão”, acrescentou. O presídio oferece cursos e opções de trabalho para as internas, mas as vagas são insuficientes.
Pergunto se há disputa de facções nos presídios femininos, a exemplo do que ocorre nos masculinos, e ela responde enfática: “O comando aqui dentro é sempre azul, o comando é nosso!”, diz, referindo-se ao azul dos uniformes das guardas.
“Estou vagando, sem destino”
A primeira entrevistada é a L., de 54 anos. Foi condenada a 42 anos de reclusão, dos quais já cumpriu 17. Ou seja, já passou quase um terço de sua vida confinada. Pergunto o motivo da prisão e ela se limita a dizer os números dos artigos do Código Penal que infringiu.
Trata-se de uma reação comum das presas. Não gostam de falar sobre os crimes que cometeram. Ela foi condenada por sequestro, roubo seguido de morte e formação de quadrilha.
Nascida na Paraíba, mudou-se ainda criança para o Rio de Janeiro. Foi mãe solteira, tem um filho e uma filha, de pais diferentes, cujas idades ela já não se lembra mais e que não a visitam. Casou-se quando os filhos já eram crescidos, e se envolveu no crime com o marido e o enteado. O marido está no presídio Bangu 3 e eles se encontram quando as visitas íntimas são autorizadas.
Mas não vê os filhos há muito tempo. A última notícia que teve deles, por carta, foi há dois anos. “Não sou santa. Errei muito. Estou vagando, sem destino”, diz, aos prantos. Demonstra fragilidade emocional e não consegue sequer fazer as contas de quanto tempo de prisão ainda lhe resta, porque tem vários anos de trabalho acumulados na prisão (na cozinha, faxina, confecção de roupas). Cada três dias trabalhados significam um dia de redução de pena a ser determinado pelo juiz.
Sobre a passagem dos 50 anos, diz não ter sentido mudança relevante com a menopausa, mas enfatiza que sua memória está afetada pelas experiências negativas que presenciou na prisão. “Vi muitas mortes e rebeliões. Isso mexe com a cabeça da gente”.
Enquanto espera a liberdade, diz que “trabalha para não enlouquecer” e que acredita poder reconstruir a vida quando sair da cadeia.
“A prisão dói, mas não é eterna”
Se é possível alguém se achar com sorte por ter sido preso, este seria o caso de G., 55 anos, e sua filha P., de 34 anos. As duas foram presas juntas, e condenadas por tráfico de drogas. Na cadeia, voltaram a estudar. G. teve cinco filhos de pais diferentes; P. teve três, que estão sob os cuidados de uma irmã. A mãe arrastou a filha para o alcoolismo; a filha fornecia-lhe cocaína. Quando uma decidia parar, a outra a puxava de novo para o vício.
Elas afirmam que a prisão as livrou da morte e que estarem confinadas, dividindo a mesma cela, permite que uma uma cuide da outra. O abandono da família, grande fantasma da cadeia, pelo menos para elas, foi aliviado.
G. começa a contar sua história a partir do momento da prisão. Ela possuía uma pequena mercearia, onde vendia bebidas, e estava viciada em cocaína havia três anos. Aos 52 anos, às vésperas do carnaval, foi flagrada com 46 saquinhos da droga. A quantidade configura tráfico, mas ela insiste que se destinava ao próprio consumo. A filha, também usuária, foi presa e condenada com ela.
A cocaína entrou na vida de G. três anos depois da menopausa, mas já fazia parte da vida da filha. As duas eram dependentes do álcool, e se arrastavam cada vez mais para o abismo.
“Entrei na menopausa aos 46 anos, e aos 49 comecei a usar cocaína. Meus amigos usavam drogas, minha filha ficava drogada vários dias seguidos. E eu achava normal. Acho que a menopausa foi um fator a mais para o meu vício, mas o motivo principal foram as circunstâncias da minha vida. A droga me impediu de ver qualquer mudança, boa ou ruim, da entrada nos 50 anos…”, diz.
“Fui internada várias vezes com hepatite C e com complicações da diabetes. Eu me drogava e não me cuidava. Estava refém das drogas, numa prisão espiritual. Agora eu tomo remédios e me cuido”, continua.
“A prisão dói, mas não é eterna. Ela tem sido um aprendizado para nós duas. A comida na cadeia é ruim, mas a situação para quem está fora é ruim também”.
“Se não estivéssemos presas, estaríamos mortas. Somos almas gêmeas” — P., que está presa com a mãe por tráfico de drogas.
P. concorda com a māe e dá seu depoimento sobre a vida no presídio: “Não culpamos uma à outra por estarmos na cadeia. Deus fez certo. Se não estivéssemos presas, estaríamos mortas. Somos almas gêmeas. Erramos e acertamos juntas. Eu tinha que estar aqui com ela, para melhorarmos juntas”, diz a jovem.
“Quero reconquistar a confiança dos meus filhos, e mostrar para eles que mudei. Penso em abrir uma pizzaria quando sair e refazer minha vida”, afirma P.
“Fiquei mais disponível para ouvir e fazer amizades”
Nascida em Mamanguape (Paraíba), M., de 51 anos, cumpre pena de 16 anos de prisão. Quem a vê, pequena e tímida, não consegue imaginar o que a pôs atrás das grades. Perguntei o motivo da prisão. “ Matei uma mulher. A gente não se dava”, declarou, demonstrando desconforto com a pergunta. Pedi, então, que me contasse sua história:
“Sempre trabalhei como doméstica, dos 18 anos até ser presa, em 2011. Quando cometi o crime, minha patroa não acreditou no que tinha acontecido e me apoiou no início. Tinha 11 anos que eu trabalhava para ela”, diz.
“Na prisão, acordo às 7 horas e limpo o cubículo que divido com cinco presas mais jovens. Me dou bem com elas. À tarde vou à escola. Voltei a estudar no presídio. Gosto de estudar. Estou no terceiro ano do Ensino Médio”, conta M.
“Ainda não sei o que vou fazer quando terminar os estudos. Me falam para fazer faculdade, mas não sei se quero. Só penso em sair daqui, voltar a trabalhar e a viver com meu filho e netas”.
“Sou uma boa presa, calma. Eu trabalhei no setor de confecção, mas acabei desistindo. Diziam que eu trabalhava muito devagar. Sempre muito calma”.
Menopausa, amizade e sexo
“Ainda não entrei na menopausa, mas já sinto mudanças no meu comportamento. Aprendi na prisão que é possível gostar das pessoas como elas são, com seus defeitos e qualidades. Acho que isto se deve à maturidade”, acredita M.
“Antes, eu vivia do trabalho para casa e da casa para o trabalho e não tinha amigos. Me tornei mais disponível para ouvir as pessoas. Mudei em minha relação com o próximo. Aqui eu tenho tempo para conversar e para fazer amigas”.
“Minha família não me visita, e não recebo produtos de higiene dos parentes, como as outras presas. Uma colega mais jovem me ajuda. Ela me chama de tia e me dá sabonete, absorvente, shampoo”.
“Nunca tive caso com mulher aqui dentro, mas já me pediram em casamento várias vezes. Mulheres não me atraem. Estou presa há mais de cinco anos e nunca me interessei por mulher. Às vezes sinto falta de homem, mas é vontade que dá e passa. Quando sair, claro que eu quero arrumar um namorado”, confidencia M.
Um crime e a mudança de vida
“O crime interrompeu minha vida com meu filho e com minhas netas. No começo, ele me visitava, mas há quatro anos não tenho notícias dele. Não sei se continua no mesmo endereço. Estou mais chorona. Queria ver ele. Mando cartas, mas ele nunca respondeu. Tenho irmãs no Rio de Janeiro, mas não vêm me ver. Meu pai ainda é vivo, e também nunca me visita”.
“Matei uma mulher, por briga. A gente não se dava. Até hoje não entendo o que aconteceu. Foi coisa de muita raiva. Nunca mais senti uma raiva como aquela”.
A descoberta e um choque
Faço uma última tentativa de saber quem ela matara. Pergunto se era uma vizinha, quem sabe uma rival? E ela responde baixinho: “uma mulher”.
Deixo o presídio intrigada com os motivos que levaram minha última entrevistada à prisão. Chego em casa, e vou direto ao computador. Consulto a página do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e tenho um choque: ela enforcara a própria mãe, com uma toalha de mesa. E a mãe não teve chance de se defender. Era cega.
Não se pergunta ao preso o motivo da prisão
Quando entrei no Talavera Bruce para entrevistar as presidiárias com 50 anos ou mais de idade, ignorava uma regra não escrita, adotada por estudiosos das mulheres encarceradas: não se pergunta o motivo que as colocou atrás das grades, porque isso as constrange.
A psicanalista Heloneida Neri trabalhou como psicóloga no Talavera Bruce por quatro anos e integrou um grupo de pesquisa da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) sobre presidiárias. Ela diz que, durante os atendimentos, jamais perguntou sobre os crimes cometidos: “Elas já foram julgadas e condenadas. O psicólogo não pode condená-las de novo”, afirmou.
Para Heloneida Neri, a mulher criminosa é duplamente punida pela sociedade, pois também é abandonada pelos maridos. Muitas criavam os filhos sozinhas e vivem a angústia de não saber onde estão e como os reencontrarão quando retomarem a liberdade.
Dois motivos, na visão dela, levam os homens a abandonar as mulheres nos presídios: “Se também for criminoso, não se expõe indo à cadeia. Se não for criminoso, rejeita a mulher condenada. Os homens presos não sofrem essa rejeição.”
Em relação às presas com 50 anos ou mais, ela diz que são tão “invisíveis” que não chamaram sua atenção nos quatro anos em que trabalhou no Talavera Bruce. A prioridade é a massa jovem, sobretudo as grávidas, afirma.
Para ela, a presidiária madura é “invisível” porque, em geral, tem condenação longa e perde a perspectiva de futuro. Naquele ambiente, a passagem do tempo parece doer mais na alma.
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