A mulher no botequim
A presença feminina num universo masculino como um botequim ainda perturba muito os homens. Foi em busca de estudar esse estranhamento que o jornalista Paulo Thiago de Mello foi investigar esses conflitos entre assíduos de bares e mulheres também freguesas.
Numa terça-feira ensolarada, lá pelos idos de 2001, entrei num botequim de Laranjeiras, na Zona Sul do Rio, um pouco antes do meio-dia, para um almoço com uma amiga. Joana ainda não chegara e o bar estava relativamente vazio. À entrada, uma mesa era ocupada por cinco fregueses da casa, todos com mais de 60 anos e aposentados. No balcão, três engravatados na faixa dos 30–40 anos bebiam chope em pé. Por fim, na outra ponta do bar, o português, dono do estabelecimento, conversava com um cliente. Vendo que só havia homens, me preocupei sobre como Joana se sentiria ali e me sentei num canto mais afastado. Enquanto esperava, fiquei ouvindo as conversas dos “coroas”, que riam alto e contavam anedotas, bravatas, mentiras espetaculares e interagiam jocosamente, fazendo troça uns dos outros.
Um deles, sem omitir os detalhes mais sórdidos, contava suas aventuras amorosas dos tempos em que era obrigado a viajar a trabalho. Até que se concentrou no susto que vivera ao trair a esposa — linda, loura e “do lar” — com uma morena com “ares de espanhola” numa de suas idas a São Paulo. Num tom falsamente melodramático, repleto de onomatopeias e pantomimas, exagerava sua narrativa, tornando-a uma espécie de fábula hilariante, cujo final deveria trazer algum ensinamento moral sobre as competências que um homem deve ter e exibir. O lead da história, bastante vulgar, consistia em seu desespero, após praticar sexo oral com a “espanhola”, ao perceber que um fio pubiano de sua amante ficara preso em sua garganta. Além de coçar horrores, era uma evidência física de sua traição, e sua mulher, arguta e desconfiada, certamente descobriria a aventura extraconjugal.
O velho sabia contar uma história obscena e, a essa altura, capturava a atenção de todos no bar, não apenas de seus companheiros de mesa. Para além do relato em si, o enredo cumpria uma parte fundamental de um rito cotidiano dos homens nos botequins: evidenciar aos pares as competências de um “homem de verdade”. No caso, o coroa mostrava não apenas seu repertório de truques e espertezas para iludir a mulher, mas o fazia com estilo e humor. A plateia, por sua vez, cumpria o seu papel no rito, questionando, duvidando e fazendo troça e, por fim, aplaudindo o desempenho do nosso esdrúxulo narrador.
Este, com ares de bufão, gesticulava muito, fazendo sinais lascivos e apimentava a história com insinuações e uma fala repleta de preconceitos sexistas, racistas e típicos de certa mentalidade, que mal disfarçava uma resistente misoginia. Mas o bom humor do coroa, a interpretação teatralizada de sua história, além de entreter os presentes, cumpria uma função social, naturalizada e relativamente inconsciente, de estabelecer ou reforçar laços de confiança, camaradagem e boemia entre os pares, seus companheiros de copo, seus “iguais”.
A encenação do velho tinha menos a ver com a história em si, e mais sobre o que ela evidenciava nas entrelinhas: as competências sociais que um homem deve ter e demonstrar. Esta é, na verdade, a motivação primordial de quase todo homem nos espaços de ambiência masculina (botequins, barbeiros, campos de pelada, churrascos de rua etc). Todo homem traz um repertório de atitudes e narrativas que evidencia suas qualidades aos pares. E estes reagem duvidando, questionando jocosamente, contestando por meio de piadas e desafios, num roteiro repetitivo que culmina na reafirmação dos laços de confiança, ou não, e, neste último caso, abre-se espaço para conflitos que, não raro, chegam às vias de fato ou rompimentos e inimizades.
Voltando ao nosso coroa histrião, à medida que este se aproximava do desfecho de sua fábula extraconjugal, mais hipnotizados ficávamos. E ele, percebendo a atenção que recebia, já não falava apenas para sua mesa de amigos de copo, mas para todos no bar. Porém, no exato instante em que ia revelar o desfecho da história, ou seja, como resolveu seu, digamos, dilema capilar, eis que Joana, com o ar brejeiro e alheia ao que acontecia, entrou sorridente no botequim, indo direto em minha direção, com o vestido florido enaltecendo sua beleza e juventude. Foi um zás. Bastou sua presença para calar o coroa, que, à voz miúda, concluiu a história sussurrando para os companheiros de mesa. Enquanto eu abraçava minha amiga, observava o constrangimento geral e como a presença repentina de uma mulher interrompera um rito corriqueiro de afirmação masculina, além, é claro, de ficar curioso sobre o desfecho daquela narrativa.
Este episódio me fez perceber o quanto a presença da mulher no bar perturba os homens e decidi investigar o assunto. Lembrei-me da pesquisa de um antropólogo, sobre um bar na feira central de Campina Grande, na Paraíba: durante meses trabalho atrás do balcão, vendendo cachaça e salgados, ele registrou as conversas dos fregueses, a maioria composta por homens de baixa renda. O título de sua monografia resume o tom dessas conversas: “Mulher é o cão!”. Ele percebeu que boa parte das afirmações de masculinidade consistia numa espécie de embate simbólico com as mulheres.
Em minha etnografia sobre um botequim de proximidade num bairro residencial do Rio, também registro o conflito entre alguns assíduos do bar e uma freguesa que, apesar de todos os sinais de rejeição, insistia em beber com eles no balcão. Determinada, ela enfrentou as ofensas e acabou aceita no grupo, vista como uma “maluquinha”. Isso me fez pensar que, diante da mulher desacompanhada, o grupo masculino no botequim fica sem saber como agir. Precisa então estabelecer qual é, afinal, o papel daquela mulher ali no bar: é filha ou mulher do dono? É garçonete ou cozinheira? Está com alguém? Está em grupo? É puta? É louca? O importante, como sugere Erving Goffman, é definir a situação, para que todos voltem a representar seus papéis e seus ritos de interação sem o risco de atitudes não previstas que ameacem o curso da convivência.
A antropóloga Ângela Maria Garcia, em sua dissertação sobre alcoolismo, conta a experiência dramática de ter sido expulsa de um botequim por seu informante privilegiado, num dia de bebedeira, porque ele não conseguia entender, afinal, o que ela estava fazendo naquele pé-sujo de São Gonçalo. Não adiantou ela explicar que se tratava de uma pesquisa para a universidade sobre consumo de álcool. Sem saber direito o que isso significava, enquanto a expulsava do bar, gritava: “Você está caçando homem? Você é puta?”. Em seu relato, Garcia explica ter percebido que ele agiu estimulado pelos demais homens no bar, igualmente incomodados com sua presença ali.
Já a antropóloga Simoni Lahud Guedes, num estudo sobre futebol, também em São Gonçalo, reparou que o território masculino do jogo ia além do campo, abrangendo os bares do entorno. Ela conta a história de um freguês assíduo de um desses pés-sujos, que é confrontado, aos berros, por uma vizinha. Descontrolada, ela diz ao homem que avise sua mulher para parar de fazer fofocas, acusando-a de ser sua amante. O homem permanece impassível o tempo todo. E este foi o seu “pecado”. Para o público do boteco, a razão do escândalo não foi o possível adultério ou a falsa acusação, mas o fato de o freguês ser esculachado publicamente por uma mulher sem ter tido qualquer reação.
O processo de reiteração dos papéis masculinos se dá das mais variadas formas no botequim. Até mesmo a comida pode desempenhar essa função. O Bar do Paulinho, um botequim de proximidade em Higienópolis, por exemplo, oferecia o que o dono classificava como “comida de macho” ou o “veneno na dose exata”. Pratos de sabor forte, “sem frescura” e com “tudo o que a boa saúde não recomenda”.
Num ambiente tão cheio de regras relacionadas à identidade masculina, pode-se imaginar o potencial de desestabilização que a presença da mulher sozinha, sem um papel claro, pode ter no botequim. Confrontados pela presença inesperada e insólita, os homens perdem sua linha de ação convencional, e ficam sem saber como agir.
Embora haja sinais de mudanças, o botequim ainda é um lugar de ambiência masculina (assim como o salão de beleza é predominantemente um espaço onde reina um ethos feminino). Essas percepções sobre os papéis masculino e feminino nos espaços públicos mantêm uma relação dialética com a realidade social. Portanto, variam enormemente com o tempo, o espaço onde estão localizados e os segmentos sociais que os frequentam. O problema é que elas são vividas nas situações como se fossem verdades absolutas e imutáveis. Por isso, podem nos ensinar muito sobre nossos valores culturais em relação ao gênero.
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