A floração do umbuzeiro
Mulheres sertanejas se organizam em cooperativas e empreendem. Nessa reinvenção, ganham independência, autoestima e mudam a vida no sertão.
Bem antes dos umbuzeiros centenários ganharem seus apelidos e começarem a botar os primeiros frutos, os homens dominavam o sertão, as árvores, os bichos e as mulheres. Só há pouco tempo, elas começaram a se libertar. Essa liberdade começou na cozinha. Foi assim na Fazenda Brandão e em outras 19 localidades das cidades de Canudos, Uauá e Curaçá.
Celina Cardoso de Almeida Brandão, 57 anos, e Maria do Carmo Cardoso Vieira, a Carminho, que completa 60 este mês, viveram muitos anos sob o domínio do pai. A palavra dele era forte, tinha força de lei para as seis filhas e o único filho do segundo casamento.
As moças não podiam namorar nem ir às festas. Foram criadas trabalhando pesado, para ajudar o chefe de família, que era pedreiro, ferreiro, marceneiro e sabia fazer caixões.
Celina e Carminho cresceram ouvindo o pai falar que trabalho de mulher era triplicado, pois tudo que elas faziam, como preparar almoço e limpar a casa, desmanchava-se. Por isso, Francisco José de Almeida preferia levar as meninas pelo sertão afora, onde elas aprenderam a conduzir tropa de mula, criar bichos, plantar e ajudar na construção de casas que ele empreitava.
As garotas só se divertiam na escola, onde iam dia sim, dia não, cumprindo a escala de revezamento de trabalho feita pelo pai. Também aproveitavam a farinhada, período em que faziam farinha.
“Todo mundo frequentava as casas de farinha. O trabalho ia de maio a setembro. Era animado. Podíamos brincar com os meninos. Peneirávamos a massa e a mandioca era cevada, enquanto os homens giravam a roda e usavam a prensa. Não havia motor”, conta Maria do Carmo.
Foi durante uma farinhada que Carminho começou a namorar Manuel, o Vivi, com quem se casou, em 1977, aos 21 anos. Após o casamento, uma das primeiras coisas que fez foi cortar os longos cabelos e usar vestidos e saias mais curtas, pouco acima dos joelhos. Rompia assim com as preferências do pai.
Celina saiu antes de casa. Ao completar 15 anos, foi morar com o irmão, em São Paulo. Chegou lá e arrumou emprego de doméstica. Sete anos depois engravidou. Tudo ficou mais difícil.
Viagem no Tempo
Voltando à infância, Celina seguiu o conselho da mãe, Orminda, e guardou o dinheirinho que ganhava trabalhando com o pai. Aos 10 anos, comprou seu primeiro presente: um par de sandálias Havaianas. Para quem usava vestidos feitos de saco de aniagem para enfrentar a caatinga, era um tesouro. Ela dormia, na rede, com as sandálias. E passava o dia limpando o solado com um palitinho para retirar o barro que grudava.
Quando não estava limpando as sandálias, subia nos galhos mais afastados das árvores para tirar umbu. Nunca caiu.
Pensava nisto quando estava em São Paulo e usava os vestidos que herdava da cunhada. Ficava com vergonha, a saudade de casa aumentava.
No sertão havia pobreza, mas não faltavam feijão, farinha, milho, melancia e abóbora, colhidos da roça da família. Resolveu voltar, em 1993. Ficou no ir e vir até se fixar de vez em sua terra, sete anos depois.
A vida de Carminho também deu voltas. Ela teve cinco filhos e passou a cuidar do marido. A diabetes o deixou cego. Professora do ensino fundamental por 27 anos, aumentava a renda costurando.
Em 1999, as irmãs se uniram ao Grupo Unidos do Sertão, que discutia os rumos do semiárido com agricultores familiares. No ano seguinte, “o menino do Wilson” começou a incentivar o grupo a produzir doces e compotas de umbu e outras frutas. Os mais velhos não acreditavam no que ouviam.
“Nunca vi armazém de umbu”, diziam.
Vieram os primeiros cursos e palestras. O primeiro produto que aprenderam a fazer foi o vinho da fruta, depois a geléia. Usavam a cozinha de casa. Depois, passaram para debaixo da copa do umbuzeiro.
Sem deixar de trabalhar como sacoleira, comprando peças de cama, mesa e banho, em Tobias Barreto (SE) e revendendo em Uauá, Celina participou dos cursos e se destacou.
“Fui conhecer outras cooperativas, aprendi que precisávamos de uma embalagem. Sem ela, não conseguíamos vender nada”, conta.
Em 2004, já como integrante da Cooperativa de Agricultores Familiares de Canudos, Uauá e Curaçá (Coopercuc), Celina foi escolhida para representar a entidade na Itália, onde conheceu roças e fábricas. Chegou no exterior com um baldinho com 250 gramas de doce de umbu, voltou com o equivalente a 30 mil reais para construir uma usina de beneficiamento de frutas ao lado de sua casa.
Virou também uma das personagens dos quadros da série “Catadeiras de Umbu”, expostos pelo artista plástico Gildemar Santana, em países europeus.
A Coopercuc tem uma fábrica central com 11 funcionários e quatro cooperadas voluntárias, no centro de Uauá. Conta ainda com 16 unidades de beneficiamento, espalhadas na região. Dos 261 associados, 80% (208) são mulheres. Elas produzem 14 produtos, incluindo doces, compotas e vinho. A cerveja é processada em Minas Gerais.
Os preços variam de R$ 3 a R$ 20. Os cooperativados utilizam a marca Gravetero, corruptela de graveteiro, pássaro que faz seu ninho pegando um graveto de cada vez. Representa, simbolicamente, a formação da cooperativa.
Fora da safra de umbu, a Coopercuc faz doces de maracujá selvagem, manga, banana e goiaba. Cada associado recebe entre R$ 3 mil e R$ 15 mil por ano. É um complemento financeiro muito útil.
Nos primeiros três anos, Celina usou o dinheiro para colocar piso em sua ampla casa de três quartos, sala, cozinha e dispensa.
Seu sobrinho, Hilário, coordenador da unidade de Brandão, comprou uma moto e planeja construir uma casa.
Maria do Carmo de Araújo Gonçalves Loiola, a única das 13 trabalhadoras da minifábrica que não pertence à mesma família não sabia o que era banco antes de começar a trabalhar. “Agora tenho até uma continha”, diz ela, que é da Fazenda Caladinho, outro povoado de Curaçá.
As minifábricas trabalham com três grupos de quatro pessoas, que se revezam na produção. Cada dia, uma equipe é escalada. Da temporada de três meses, os grupos operam entre 18 e 25 dias.
Apesar de 2015 ter registrado um calor acima do normal, que fez o umbuzeiro desfolhar antes do tempo, e uma praga de bicudo, os frutos tardios não atrapalharam a produção de 20 mil quilos de doces de umbu. A principal consequência foi a elevação do preço da saca de 25 quilos da fruta. Em 2015, ela custava R$ 24 no início da safra e até R$ 40, no final. Esse ano pulou para R$ 50. Somados todos os tipos de frutas, serão produzidos 150 mil quilos de doces.
Os umbuzeiros vivem mais de 100 anos, guardam água em suas raízes e começam a dar frutos após dez — três, se forem enxertados.
No tempo em que os homens reinavam no sertão, eles vinham ao chão para virar lenha e aumentar o espaço para a criação de animais. A árvore matava a sede dos sertanejos e morria porque as batatas de água de suas raízes, parecidas com um tatu-bola, eram retiradas. A casca era usada como panela para preparar alimentos na fogueira.
Assim como as pessoas, cada umbuzeiro tem um nome. Os que ficam diante da casa de Celina são os “emendados” porque nasceram colados.
Há ainda o da Questão, o da Leivina, o da Vaca e muitos outros. Vivi explica que, debaixo de um deles, os moradores da Fazenda Brandão se reuniram para decidir se um rapaz, acusado de deixar mandioca brava no solo, foi responsável pelo envenenamento de uma vaca. A culpa do jovem não foi comprovada. A questão foi resolvida e a árvore, batizada.
Outro motivo para os umbuzeiros terem nome é ajudar os pais a localizarem os filhos que estão colhendo os frutos ou brincando à sombra deles.
Umbus Maduros
Celina tem olhos amarelados. Lembram umbus maduros. A colheita tem que ser feita antes, quando eles estão inchados (no ponto). Para manter a certificação, os frutos não podem cair no chão, precisam ser retirados com cuidado.
A sacoleira e a irmã conversam com desenvoltura sobre trabalho. Contam que também criam galinhas e vendem ovos. Mas se o assunto muda, Celina mostra desagrado. Tenta continuar falando sobre planos e finanças. Revela a intenção de abrir um restaurante e uma pousada, em Uauá.
Enquanto Carminho passou a vida com o marido, Celina teve quatro filhos de companheiros diferentes. O último relacionamento terminou há dois anos, segundo a irmã. Sem dar detalhes, a irmã mais nova diz que não quer mais namorar porque não confia nos homens.
A tesoureira da Coopercuc, Benedita Varjão Barbosa, que acompanha a conversa, revela que um dos temas mais recorrentes entre as cooperadas é o fato delas terem se tornado chefes de família. Agora, ditam as novas leis do sertão.
Em vez de desmatar, preservam. Não desperdiçam dinheiro com bobagem, investem no bem-estar da família. Declararam a independência, que era pregada pelas religiosas das comunidades eclesiais de base nos anos 1980.
“A troca de comando está fazendo os homens desistirem de trabalhar. Muitos se entregam à bebida, ficam improdutivos e tentam tomar o dinheiro das mulheres”, relata Benedita.
As mudanças no sertão não são só financeiras. Elevaram a autoestima das cooperadas. Carminho diz, com convicção, que após os 50 anos ficou mais bonita:
“Eu não me arrumava. É só você ver as fotos de 10,20 anos atrás. A gente era feia demais. De um tempo para cá, com a chegada da energia, comecei a arrumar o cabelo, a fazer progressiva. Estou ótima”, diz, irradiando felicidade.
Comments are closed here.