Uma chave para o quarto mágico

A chegada aos 40, 50 ou 60 traz o desafio de conciliar a rotina atribulada com o anseio de cuidar dos mais velhos: nossos pais, avós e irmãos mais velhos. 

O mais difícil ao passar dos 40, quem diria, não são os cabelos brancos. Nem a dor nas costas que aparece de vez em quando. Nem mesmo ter que desistir de vez daquela calça que você guardou por anos, esperando que ela um dia abraçasse de novo sua cinturinha que já foi de pilão.

Quando dobramos a curva dos 40, 50, 60, cresce a preocupação com a saúde. Permanece a atenção com os filhos, que cresceram ou estão crescendo, e saíram daquela fase de contrair todos os vírus que aparecem. Mas a saúde que passa a nos preocupar mais agora é a nossa (ainda não muito) e, sobretudo, a de quem sempre cuidou de nós _ nossos pais, avós e irmãos mais velhos.

Para lidar com os mais velhos, cada família tem de encontrar sua fórmula, que não é simples nem indolor / Foto de Ana Lúcia Araújo.

Para lidar com os mais velhos, cada família tem de encontrar sua fórmula, que não é simples nem indolor / Foto de Ana Lúcia Araújo.

De uma hora para outra, nós, brasileiros adultos de classe média, somos apresentados a uma vastidão de remédios e a médicos cujas consultas não estão cobertas pelo plano de saúde que nossos pais pagaram a vida inteira. Muitas vezes, o fundo de pensão para o qual eles contribuíram também não garante um complemento de aposentadoria suficiente para bancar despesas que surgem de todos os lados. Isso quando o fundo não quebra, como o Aerus, dos veteranos da Varig.

Os números do IBGE mostram, não é de hoje, que o brasileiro está vivendo mais. Em 2014, a expectativa de vida ao nascer no Brasil era de 75 anos e 2 meses, sendo maior para as mulheres (78 anos) que para os homens (71 anos e meio). Especialistas têm analisado o impacto dessa mudança demográfica nas contas, na Previdência Social e nas políticas públicas. O país envelheceu, mas não se preparou para isso. Nós também não.

Deixo as estatísticas aos analistas e penso nas histórias que tenho ouvido. Um tema que aparece com frequência nas conversas entre amigos da minha geração é como conviver com a velhice de quem amamos _ isso no caso daqueles que, na virada dos 45, 50, ainda alcançam a ventura de terem pais e até avós vivos. Cada amigo ou amiga tem sua dúvida, sua dor, sua hora de não saber o que fazer.

Com quem deixar a tia de 95 anos que sempre morou sozinha, o que já não é possível? O que fazer com o pai que, aos 90, sofre de Alzheimer e não conhece mais filhos e netos? Como responder à linda senhora que lhe pergunta, “que bom ver você, como vai sua mãe? ”, sendo que aquela senhora é sua mãe? Como agir com seu pai, paralisado pelo Mal de Parkinson, precisando ser banhado, barbeado e alimentado? E com seu irmão mais velho, que descobriu ser portador de uma doença degenerativa incurável?

Para lidar com os mais velhos, cada família tem de achar sua fórmula, que não é simples nem indolor. Muitas apelam para cuidadores profissionais. Outras, para clínicas especializadas. Vi numa rede social o desabafo de uma mulher que se desculpava por ter internado numa dessas clínicas a mãe, muito agressiva e em estado de demência causada pelo Alzheimer. Tem gente que simplesmente abandona seus idosos, mas desses prefiro não falar.

Depois de um dia sem respostas para tantas questões, certa madrugada tive um sonho esquisito. Sonhei que na minha casa existia um quarto mágico, e quem entrava lá abria um baú contendo e contando a infância de uma pessoa amada, numa espécie de janela para o passado. Não era um baú de fotos, com imagens estáticas, mas um baú do tempo: aquele pedaço da existência saía do baú e ganhava vida de novo. Era possível saber como tinha sido aquela pessoa no colégio, brincando no parquinho, fazendo piscininhas na praia. Uma prima muito querida reencontrava sua mãe, jovenzinha, de tranças. Minha mãe observava sua mãe, minha avó, brincando de boneca. Eu via minha irmã mais velha, levada pelo câncer aos 57 anos, lourinha, menina, correndo na praia.

Não sei quem escreve o roteiro dos nossos sonhos. Mas esse sonho clareou minhas ideias: para além de médicos, remédios e clínicas, para além dos compromissos profissionais e pessoais, é possível e necessário encontrar um jeito de cuidar dos mais velhos. Se estamos longe, um telefonema pode ser valioso. Acompanhar uma consulta é fundamental.

Para além de médicos, remédios e clínicas, para além dos compromissos profissionais e pessoais, é possível e necessário encontrar um jeito de cuidar dos mais velhos.

Assistir com seu pai a um jogo de futebol também vai ajudar muito. Olhar fotos antigas e ouvir velhas canções se mostrou um método certeiro para fazer com que eles se lembrem de coisas e pessoas que sempre amaram. Na reta final da vida dos nossos velhos amigos, é preciso se preparar para cuidar deles como um dia eles cuidaram de nós.

Fernanda da Escóssia, especial para Mulheres50mais

Fernanda da Escóssia, especial para Mulheres50mais

Fernanda da Escóssia, 44, é jornalista e professora da UFRJ e do IBMEC/Rio, onde leciona as disciplinas de Redação Jornalística, Jornalismo Político e Ética. Potiguar, cresceu em Fortaleza, no Ceará, e formou-se em jornalismo na Universidade Federal do Ceará. No Rio há mais de 20 anos, foi repórter da Folha de S.Paulo, repórter, subeditora e editora de Política do Globo. Hoje escreve para a BBC Brasil sobre direitos humanos. É mestra em Comunicação pela UFRJ e cursa doutorado em História, Política e Bens Culturais no CPDOC, da Fundação Getulio Vargas. Casada com um carioca, é mãe de dois carioquinhas. Mantém no facebook a comunidade Tempo para Viver, sobre prevenção ao câncer de mama.

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