Um dia, Luciana se lançou ao mar

Funcionária aposentada do Estado do Rio, ela resolveu se aventurar pelos oceanos. A incrível história da educadora que corre o mundo em um veleiro e hoje vive na Austrália

Luciana Sabino em Lombok, na Indonésia. Ao completar 53 anos e deixar o serviço público, ela embarcou num veleiro para viajar pelo mundo / Fotos de arquivo pessoal

Luciana Sabino em Lombok, na Indonésia. Ao completar 53 anos e deixar o serviço público, ela embarcou num veleiro para viajar pelo mundo / Fotos de arquivo pessoal

“Meus filhos eram uma das razões que me faziam partir, pois eu achava que eles, assim como eu,

estavam prontos para aquela separação e que, além de estarmos prontos, precisávamos disso.”

Estávamos em maio, fins de maio. Eu esperava ansiosa o dia em que poderia pedir a minha aposentadoria: 27 de junho de 2013.

Sem desafios, resultados e tampouco reconhecimento, o trabalho para o governo do Estado do Rio não mais me entusiasmava. Aos 53 anos, parecia que havia chegado a hora do basta para aquele cotidiano de horários, chefes, um sem fim de reuniões e discussões infrutíferas.

No entanto, as coisas não estavam tão claras. Apesar do desânimo com o trabalho, me sentia dividida: aposentar-me e continuar trabalhando ou me refugiar em minha casinha da serra? Fazer nada estava fora de cogitação, eu não conseguiria. Também estava cansada da vida na cidade, calor, tráfego, violência e gente, muita gente. Mas, por outro lado, pensava, poderia fazer uma boa reserva de dinheiro se continuasse trabalhando por mais uns dois ou três anos.

Outra questão eram os filhos. Os dois, um com 30 anos e outro com 24, moravam comigo, pois ainda não tinham condições de sair de casa. E, confesso, eu já começava a dar sinais de cansaço daquela convivência, de ter que dar limites e ficar preocupada quando acordava no meio da noite e um deles ainda não havia chegado em casa. Estava claro para mim que, por mais que amasse meus filhos, havia chegado a hora de cada um buscar o seu espaço.

Foi nesse contexto que surgiu a aventura com que eu sonhava. A primeira grande virada, após os 50. Uma amiga me telefonou perguntando se eu gostaria de dar a volta ao mundo em um veleiro. Como assim? Simples. Ela conhecera um polonês que estava completando a sua terceira volta ao mundo e precisava de uma tripulante. Sabendo o quanto eu gostava do mar e de aventuras, não titubeou: indicou-me para tripular o catamarã.

Fui apresentada ao capitão e dono do barco em 28 de maio. No dia 6 de julho de 2013, levantamos a âncora da Praia de Charitas, em Niterói. O período de cerca de dez dias entre o convite e a minha afirmativa foi uma loucura. Não tinha muito tempo para pensar, pois tínhamos apenas três meses para percorrer o litoral do Brasil, do Rio de Janeiro ao Amapá, uma vez que o visto do capitão expiraria nesse prazo.

É fácil imaginar que, diante desse prazo reduzido, o conflito que eu vivia ganhou proporções gigantescas. Se, por um lado, a aventura me seduzia, por outro, o medo me assaltava. Eu não conhecia o capitão e nada sabia de vela! Largar tudo ora me parecia fascinante, ora uma loucura desmedida.

Embora estivesse decidida, a reação das pessoas próximas ainda causava efeitos em mim. Alguns se mostravam admirados, outros consideravam que eu estava fora do meu juízo perfeito. Certa vez, em um dos eventos a que compareci antes da minha partida, uma das amigas me disse que faria o mesmo que eu, não fosse pelos filhos. Respondi que, ao contrário dela, meus filhos eram uma das razões que me faziam partir, pois eu achava que eles, assim como eu, estavam prontos para aquela separação e que, além de estarmos prontos, precisávamos disso.

Saí daquele jantar pensando na resposta que havia dado e muito satisfeita comigo mesma. A partir de então, aquele assunto estaria resolvido para mim. Nessa primeira fase da minha nova vida, convivi com o capitão polonês por quase um ano e meio. Velejamos cerca de 25 mil milhas náuticas, passando pelo Nordeste brasileiro, Guiana Francesa, Caribe, Panamá, Galápagos, Polinésia Francesa, Tonga, Nova Caledônia, Indonésia, Malásia e Tailândia.

luciana2

Foi uma fase de grandes aprendizados: navegação, GPS, ventos, velas, cabos. Mas, o maior de todos os aprendizados, sem dúvida, foi a profunda conexão que estabeleci comigo mesma. As solitárias horas em vigília durante a noite, no meio do oceano, provocam viagens incríveis. No início, é um turbilhão de pensamentos. Tudo e todos se misturam e se alternam na mente. Histórias são recontadas e convicções reconsideradas. O sono é povoado de sonhos incríveis e, aos poucos, a mente vai se acalmando.

Mas, eu não estava no paraíso. A vida a bordo não era tão romântica. O capitão apresentava uma terrível instabilidade de humor. Ora calmo e atencioso, ora com crises de irritabilidade. Passávamos momentos maravilhosos em lugares idílicos, mas, de repente, vinha a crise. Estava difícil.

A minha vontade de seguir a viagem era tão grande que fui suportando as crises, me fechando em meu mundo no incrível contato com a grandeza do oceano, com leituras, filmes, culinária e artesanato. E, assim, chegamos à Indonésia, mais exatamente em Kupang, no Timor, onde novamente aconteceria algo que mudaria o rumo da minha vida!

Depois de 37 dias de vela com apenas duas ancoragens em recifes inóspitos no Pacífico Sul, lançamos âncora em Kupang, ao lado de um catamarã australiano. O capitão veio até nosso barco nos convidar para uma cerveja.

Foi uma tarde agradável, conversamos bastante e trocamos contatos. Nos dias que se seguiram, dificuldades com a imigração na Indonésia provocariam uma nova crise no capitão, o que me faria abandonar o barco.

Sem o visto para a Indonésia e refém das exigências das autoridades da imigração, passei cinco dias em Kupang, sem passaporte, aguardando solução. Como não havíamos solicitado o visto antes de chegar à Indonésia (exigência para quem chega por mar), estava sendo obrigada a deixar o país.

E agora, pensei, o que fazer? Voltar para o Brasil ou continuar a aventura? O encontro com duas mulheres — uma eslovena e uma irlandesa — no albergue em Kupang foi definitivo para minha decisão de continuar a viagem. As duas, no sistema de mochilão, me incentivaram a fazer o mesmo.

Passados os cinco dias, e tendo desembolsado US$ 200 às autoridades da imigração, finalmente consegui embarcar num voo Kupang-Bali-Kuala Lumpur. E assim comecei o meu mochilão pela Ásia. De volta à Indonésia, agora com visto, conheci Bali, Lombok, Flores, Sumba, Sumbawa e Jawa. De lá, voltei à Malásia e segui para a Tailândia e Camboja.

Durante esse período, mantive contato, via internet, com Gavin, o capitão do catamarã australiano que conheci durante a ancoragem em Kupang. Quando soube que eu havia abandonado o barco quatro dias após o nosso encontro, convidou-me para velejar com ele. Disse que, em maio, iria para as Ilhas Salomão fazer charter (serviço de fretamento do barco) e que eu seria muito bem-vinda a bordo.

Pensei muito, mas o medo de encarar um novo capitão desconhecido, as saudades dos amigos e de casa, a vontade de voltar ao Brasil para ver como me sentiria, além dos cupins que devoravam o meu apartamento, em Niterói, me fizeram declinar do convite. Assim, depois de uma breve visita a Portugal, no dia 26 de maio de 2015, pousei no Rio de Janeiro.

Encontrei o Rio mergulhado em uma onda de assaltos com facadas e arrastões. Meus amigos estavam em pânico e, de início, fui acometida pelo medo. Com o tempo, me acostumei, mas, na verdade, não me readaptei. Não queria mais aquela vida.

Durante esse período no Brasil, fiz obras no apartamento, me cadastrei como voluntária na ONU, viajei para o Sul, passei um tempo na serra. Estava novamente sem saber o que fazer. Mas o tempo se encarregou de me mostrar.

O capitão polonês me chamava para voltar para o barco. Titubeei. A vida no mar me encantava. Mas logo caí na realidade e recusei. Foi aí que voltei a conversar com o australiano e perguntei quando começaria a nova temporada de vela na Austrália. Ele me disse que seria somente em maio, mas que eu seria bem-vinda a qualquer momento, para compartilhar a vida dele, o que consistia em passar parte do ano trabalhando em agricultura em uma fazenda e parte com charter nas Ilhas Salomão.

Novamente foi tudo muito rápido. Em setembro obtive o visto australiano, comprei a passagem, terminei as obras, esvaziei meu apartamento, doei móveis e utensílios para o meu filho, que começara a construir a sua casa, e fiz um “garage sale”.

No dia 7 de novembro, embarquei num voo para Sydney, carregando tudo que tinha: uma pequena mala e meu mochilão, laptop, celular, câmera fotográfica e um kindle, além de uma ansiedade absurda pelos dias que estariam por vir.

Gavin me recebeu no aeroporto de Sydney. No começo, tínhamos dificuldade de comunicação, mas a cada dia, ela flui melhor. Já fizemos muitas coisas juntos: colhemos, cortamos e polimos alho, trouxemos um catamarã de Fiji, viajamos de carro pela Austrália, reparamos e pintamos o barco, plantamos alho, colhemos azeitonas e adotamos uma cadelinha, a Luna.

Agora, nos preparamos para a temporada nas Ilhas Salomão. Ficaremos lá até outubro.

O que vai acontecer depois? Não sei. Aprendi a não fazer muitos planos. Fico por aqui enquanto meu sorriso estiver fácil. E quanto às saudades, quando me perguntam, respondo: São as saudades mais alegres que alguém poderia ter.

Infográfico de Fernando Alvarus

Infográfico de Fernando Alvarus

POR ONDE LUCIANA PASSOU:

Na primeira fase, a partir de 2013, ela partiu de Niterói e passou por Búzios, Vitória, Salvador, Aracaju, Maceió, João Pessoa, Fortaleza, Isla del Diablo, Tobago, Grenada, St Vincent and The Grenadines, Sta Lucia, Martinica, Bonaire, Curaçao, Aruba, Arquipelago de San Blas, Colon, Canal do Panamá, Cidade do Panamá, Arquipélago Las Perlas, Galápagos, Ilhas Marquesas, Ilhas Tuamotus, Tahiti, Moorea, Huahine, Raiateia, Bora Bora, Tonga, Nova Caledônia, Melish Reef, Albany Island, Torres Strait, Arafura Sea, Kupang (Timor), Kuala Lumpur, Bali, Flores Island, Komodo Park, Rinca, Kanawa, Lombok, Gili Islands, Java, Kuala Lumpur, Penang, Langkawi, Bangkok, Chiang Mai, Siem Riep, Phnom Penh, Krabi, Phuket, Bali, Sumbawa, Bali, Lisboa, Rio de Janeiro

Na segunda fase, em 2015, ela partiu de Sydney e fez o seguinte percurso: Scone, Fiji, Sydney, Coffs Harbour, Byron Bay, Maryborough, Tahiti, Sydney, Scone, Katoomba (Blue Mountains)

Luciana Sabino é graduada em Educação, especializou-se em Planejamento Estratégico e Gestão da Qualidade Total. Funcionária do Estado do Rio de 1982 a 2013, foi gerente de Recursos Humanos da Imprensa Oficial e assessora de Qualidade do Serviço Geológico do Estado. Atuou como examinadora do Prêmio Nacional da Qualidade e avaliadora e instrutora do Prêmio Qualidade Rio. Paralelamente, ao trabalho no setor público, manteve um atelier de decoração e mosaico, por seis anos, onde dava vazão aos seus dons artísticos.

Luciana e Gavin estão no Paradise Cruises, Cruzeiros Marítimos nas Ilhas Salomão e Papua Nova Guiné e podem ser contatados no site www.svchemistry.net

Luciana Sabino, especial para Mulheres50mais

Luciana Sabino, especial para Mulheres50mais

Luciana Sabino é graduada em Educação, especializou-se em Planejamento Estratégico e Gestão da Qualidade Total. Funcionária do Estado do Rio de 1982 a 2013, foi gerente de Recursos Humanos da Imprensa Oficial e assessora de Qualidade do Serviço Geológico do Estado. Atuou como examinadora do Prêmio Nacional da Qualidade e avaliadora e instrutora do Prêmio Qualidade Rio. Paralelamente, ao trabalho no setor público, manteve um atelier de decoração e mosaico, por seis anos, onde dava vazão aos seus dons artísticos.

Comments are closed here.