Tempo de renovação e de leveza

“A festa mora em mim”. Ela fala assim, sem modéstia, dando gargalhada e jogando a cabeça para trás, desalinhando os cabelos encaracolados. Rita Fernandes, 54 anos, quase 55 que irá completar em abril, conversa olhando nos olhos, gesticulando muito e explicando sua paixão pelo carnaval. Ela aponta para o ventre, fala de criação, gestação, cuidados como se fosse com um filho. Carnaval para ela está muito além dos dias de desfile de folia dos blocos nas ruas, está nas estranhas, nos estudos do mestrado, transborda na emoção.

Mineira de Juiz de Fora, Rita cariocou de vez há umas três décadas. É presidente há 14 anos do Sebastiana, entidade que reúne 12 dos mais tradicionais blocos carnavalescos do Rio: “Na verdade, fui indicada e eles foram me reconduzindo todos esses anos”. Em sua gestão, ela misturou, segundo suas palavras, um pouco de comunicação, de política e do carnaval propriamente dito. Levou para a associação a importância da construção de imagem que já trabalhava no mundo corporativo e político. Acredita que a gestão pode ser feita com diálogo, construindo pontes, fazendo redes e também enfrentando as opiniões adversas: “Não adianta você fazer oposição só por fazer oposição. Você tem que saber fazer oposição e saber onde chegar. Acho que na hora da discussão, dentro do Sebastiana, meu pau é tão grande quanto o deles (a diretoria).” E cai na risada.

Mãe de dois filhos, avó de um neto, a jornalista que se formou primeiro em economia e trocou um emprego seguro no Citibank pela aventura nas redações, diz que está em um momento de “renovação total”. Com um pique invejável, sonha em fazer documentário, finalizar o mestrado, transformar a dissertação em livro, continuar trabalhando com comunicação, dar aulas em faculdade, fazer gestão no carnaval, aproveitar os dias nas ruas fantasiada e retornar ao curso de tarot que reúne em turmas pequenas.

O mergulho na cabala, tarot, astrologia, estudo dos arquétipos, pensamento junguiano, mitologia e afins é conversa para um outro encontro a ser marcado com as outras duas taurinas. Debaixo de sol de rachar, no bairro da Glória, o papo tangencia pela coincidência do signo, a relação com ascendente Áries. Foi o suficiente para celebrar a rede que se formou naquele momento. “O ariano é assim. Eu estou sempre abrindo frentes, tocando coisas, criando. Total Áries”. Rita pontua a frase com mais uma risada.

A tal festa que mora dentro dela foi uma frase que ouviu da amiga Cláudia Baldarelli e que ela adotou como sua definição. “O carnaval está dentro de mim como uma coisa muito visceral da qual eu realmente me aproprio”. A Rita pós 50 tem planos, está sempre em movimento e sabe qual é o seu lugar.

Rita Fernandes, a caminho dos 55 anos, sempre em movimento, abrindo frentes e criando. Fotos de Ana Lúcia Araújo

SAGRADO E PROFANO – “A paixão pelo carnaval aconteceu em Juiz de Fora, durante uma procissão da Semana Santa. Meu avô era muito católico e meu pai, ateu. Eu tinha quatro anos e estava nos ombros do meu pai assistindo aquele desfile com pessoa vestidas de anjo, Jesus Cristo… Na cabeça de uma criança de quatro anos aquilo era semelhante a um desfile. E meu pai conta que eu gritava “Viva o carnaval”. Claro que ninguém iria recriminar uma criança de quatro anos” (risos).

MATINÊS – “Eu ia nas matinês aos 12 anos no Sport Club Juiz de Fora. Eu fiquei encantada com o primeiro baile de carnaval eu lembro da sensação e dizer “que quero isso, eu quero de novo, eu quero mais”. E fiquei arrasada quando descobri que não podia ir no baile noturno. Minha prima que era mais velha ia e contava todos detalhes. Só no ano seguinte é que consegui ir, mesmo assim porque arrumei um cambalacho para entrar com minha tia (risos). Eu lembro da minha primeira fantasia, que minha avó fez era um pareô, uma havaiana estilizada. Eu tinha fantasia para os quatro dias. Foi a coisa mais maravilhosa”.

FOLIÃ – “ Só não brinquei carnaval na década de 90 um ano porque estava grávida do meu primeiro filho e, no ano seguinte, porque ele era muito pequeno. Claro que fui mudando o jeito de brincar. Não tenho o mesmo fôlego. Eu digo que descobri mesmo o carnaval quando me encantei com o bloco “Simpatia é quase amor”. É difícil explicar para as pessoas essa emoção. Eu até me casei com uma pessoa do Simpatia (risos). Eu lembro que estava com meus primos e o bloco fazia 10 anos, eu estava deslumbrada com aquele bloco na Praia de Ipanema, a música maravilhosa e eu disse: “Nossa, o que é isso, onde estava que eu não tinha percebido?”. Foi então que comecei a frequentar blocos. Estava recém- separada do meu primeiro marido, estava livre, leve e solta para me jogar nos braços de Momo. Me juntei com amigos da faculdade e fomos no Simpatia, depois no Suvaco do Cristo, Bloco de Segunda e Barbas. Isso era natural porque os blocos eram muito próximos, as pessoas eram as mesmas. Dali para as rodas de samba foi um passo natural.”

SAMBA – “As rodas de samba do Rio eram para iniciados, não tinha tomado essa proporção. Eu ia com os amigos no Sobrenatural, em Santa Teresa, no Candongueiro, em Niterói. Esse movimento do samba surge paralelo ao fortalecimento do carnaval. Claro que, quando estamos envolvidos nisso, nem sempre temos a consciência de que somos também agentes, não tem essa visão de causa e efeito. No final de 95, eu fundei junto com outros amigos jornalistas o “Imprensa que eu Gamo”, que surgiu ali, no Mercadinho São José, em Laranjeiras. Era um grupo de jornalistas de redações diferentes. Eu vinha da Folha de São Paulo, por exemplo. O local era nosso reduto depois da jornada de trabalho. Eu me joguei de cabeça. A Sebastiana veio depois, em 2000, e eu comecei minha gestão em 2004.”

PRESENÇA DE MULHER – “O carnaval está dentro de mim. Quando estou em reuniões eu tenho minha fala objetiva, profissional, racional, sem perder esse amor pela festa. Eu consigo misturar as duas coisas: a racionalidade, que precisa para estar à frente de uma instituição para executar, para colocar coisa para andar, mas tem um lado muito emocional que eu acho que traz uma propriedade muito grande. As pessoas dizem que é difícil me contrapor porque quando eu falo, eu falo com conhecimento de causa e com amor pela causa. Às vezes nas reuniões do Sebastiana eu sou o fiel da balança, faço o equilíbrio e faço essa costura. Mas quando eu tenho que colocar o pau na mesa, como eles fazem, o meu é do tamanho do deles. Ou seja, eu contemporizo, tem o diálogo, tenho essa habilidade para negociação, mas sempre encontro um meio-termo.”

TERCEIRO FILHO – “Eu coloco a Sebastiana debaixo das asas, cuido mesmo, como se fosse meu terceiro filho. É a primeira vez que eu falo assim. Mas eu cuido mesmo. Às vezes sou mais enfática, mas lido com o carnaval de forma amorosa e acho que isso faz a diferença dentro da diretoria. Nenhum deles gosta tanto de carnaval como eu gosto. Eu tenho certeza.”

PARIR, GESTAR, CRIAR – “A sensação de falar de carnaval é uma coisa que sobe (faz o gesto de tocar no ventre), vem aqui das entranhas. Você sabe quando a emoção te toca mais, daquela forma em que o choro vem com você e nem percebe porque ele veio de dentro. O carnaval para mim é uma emoção e eu acho que é por isso que eu brigo tanto. Começa aqui (e toca no ventre), na criação, no umbilical que está relacionado com o ventre, com o útero, onde a gente gera e é por isso que tenho tanto amor pelo carnaval e pelo carnaval do Rio, em especial.”

DA ECONOMIA AO JORNALISMO – “Me formei em Economia e quase larguei a faculdade um ano antes de me formar. Meu pai insistiu para eu terminar, dizendo que seria útil mais tarde. E foi. Mas eu já tinha percebido que não era nada daquilo que eu queria. Eu adorava minha turma da Uerj, era muito bacana e eu já mexia com política estudantil e tinha um baita emprego como economista junior no Citibank. Mas o que eu queria era jornalismo. Lembro que comecei a estudar na Facha e no primeiro período fui bater nas portas atrás de um estágio no Jornal do Comércio, onde encontrei pessoas incríveis que me deram uma chance, o Cesário, o Aluízio Maranhão. Fiz um teste e ouvi eles falarem “isso é balão que vai voar alto”. Eu tinha um estágio na Shell de manhã, estudava de tarde e trabalhava no jornal de noite. Não tinha como manter o Citibank. Larguei e falei para mim “eu não quero mais isso, não vou ser feliz aqui”. E me joguei no jornalismo.”

UM SUSTO – “Quando estava com 52 anos, tinha sido demitida de uma agência num processo muito desgastante que nem quero lembrar, mas o fato é que tinha resolvido começar a cuidar de mim, fazer exames. Coisas que a gente nunca faz porque a correria da profissão não deixa. Eu descobri que tinha um nódulo na tireoide. Foi terrível, consultei dois médicos que tiveram opiniões diferentes. Um queria operar e o outro, não. A questão é que você só sabe se é maligno depois da biopsia que é feita durante a cirurgia. Eu arrisquei e fiz a cirurgia. Não era maligno, mas não me arrependo da decisão. Hoje tenho que tomar todos os dias um remédio. Então, eu preferi encarar 2014 como um ano em que a vida foi generosa para mim. Foi difícil, estava sem trabalho, mas depois de um tempo me convidaram para fazer uma campanha política. Eu resolvi então repensar a minha vida. Eu não fico deprimida, eu tentei entender o que estava acontecendo. Eu acho que é o Áries que faz esse movimento. Não ia ficar chorando e, um dia, vi no Facebook um anúncio do curso de mestrado em bens culturais na FGV. E estou amando.”

MESTRADO – “Meu objeto de estudo é o carnaval de rua. Eu juntei política e carnaval, para entender como a abertura, na década de 80, criou um ambiente para esse ressurgimento do carnaval de rua. Os primeiros blocos, Simpatia, Suvaco, Barbas, nasceram nesse ambiente de abertura com pessoas que estavam na militância do PCB, MR-8, do Comitê Tancredo Neves. Claro que antes tinha o carnaval de rua, mas esse ambiente foi fundamental para ele ressurgir com força. Eu faço uma análise dos movimentos sociais, das associações de moradores, de favela. Eu vivenciei isso. Sou também um agente. E essa dissertação vai virar livro. Eu estou numa outra estrada, abrindo mais uma porta para dar aulas. É uma coisa nova para mim e estou adorando. Estou também fazendo um trabalho bacana na Globonews, quero fazer um documentário, quero mexer com conteúdos, quero contar histórias. Acho que é um retorno ao jornalismo. Fui repórter, tenho um MBA em Marketing Digital, sou economista de formação então juntei tudo isso.”

RELAÇÕES – “Tenho dois filhos. O Lucas que vai fazer 27 anos, é separado e pai do Arthur, meu neto de dois anos. O João Pedro, que fez 14 anos e tem síndrome de down. Eu não estou em casamento nenhum. Não quero casar mais. Se for para um novo relacionamento em quero cada um na sua casa, no seu espaço, eu não quero dividir a mesma casa, não quero abrir mão da minha liberdade, não quero o peso da rotina do cotidiano. Eu já experimentei três e está bom. (gargalhadas) O personagem não muda, é aquela chatice de sempre de “onde você vai, por que você está fazendo isso, por que aquilo?” Bom, pode ser que a gente converse daqui a algum tempo e eu te conte que me apaixonei de novo, casei (risos), mas hoje eu não tenho vontade. Não sinto solidão, eu tenho tanta coisa para fazer, tantos amigos, tantos projetos, minha família é grande. Eu quero viajar, ir para Jacarta, visitar uma amiga e viajar sem destino. Estou precisando me jogar.”

RITA AOS 50+ – “Eu acho que eu realizei tudo o que eu queria. Tudo aquilo que eu me propus até aqui eu já fiz. Então, hoje eu estou começando um círculo novo na minha vida. Tenho certeza. Mas é diferente porque tem muita bagagem. Então você começar um ciclo novo tendo vivido tanta coisa, tendo realizado tanta coisa. Eu me sinto muito realizada. Eu quis ser jornalista e fui ser jornalista, eu quis mexer com carnaval e fui, quis fazer o mestrado e estou fazendo. Acho que daqui para frente tem que ter uma leveza maior mesmo. Eu não me sinto cronologicamente uma pessoa de 50 anos. É como se a minha alma… eu acho que ela vai ser sempre, eu não sei eu não sei qual a idade, mas vai ser sempre jovem. Olha, eu não tenho nenhum problema para falar minha idade. Eu acho que eu sou feliz. Eu estou num momento especial da minha vida”.

RENOVAÇÃO – “A vida tem que ter sentido para mim, senão não tem graça. Senão não me anima, não me desafia, eu não consigo. Nem mesmo num casamento. Eu não consigo viver no mais ou menos, num casamento que não tem mais sentido, que não tem mais propósito. Então, não tem porque continuar. Eu sou amiga de todos os meus ex. Claro que tem o luto do rompimento, da perda, mas nada que o outro ficasse magoado. Eu terminei meus casamentos no momento que não tinha mais sentido, mais propósito. A minha mãe não entende, mas ela é de uma outra geração. Ela disse: “nossa, mas ele era tão bom com você, era tão bacana. Eu não entendo você”. Claro que eu entendo que ela não me entenda. Normal. Mas estar sozinha não significa solidão. A vida não fica vazia, uma viagem sozinha tem graça. Não estou defendendo a solidão. Hoje eu estou num momento que eu faço tudo o que eu quero, tenho meus filhos, minha casa, meu carnaval, minha tese, meu livro, meu documentário, meu trabalho e isso me completa. Me enche, me deixa feliz. Eu estou num momento de renovação total”.

 

Angelina Nunes

Angelina Nunes

Carioca, apaixonada pelo samba, ela tem pressa. Nasceu dentro de um trem da Central do Brasil, quando os pais tentavam chegar ao hospital na Tijuca. Está entre as jornalistas mais premiadas do Brasil, tendo conquistado Esso, Embratel, Vladimir Herzog, SIP, YPIS e Rey de España. Formada pela UFRJ, fez pós-graduação em Políticas Públicas no Iuperj e é mestre em Comunicação pela Uerj. Começou a trabalhar em 1980. Foi repórter e editora-assistente na Rádio MEC, TVE, TV Manchete, O Dia e O Globo. É professora na ESPM-RJ e integra o conselho da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), da qual foi presidente em 2008–2009. Adora viajar e inventar novas trilhas com a filha Bárbara e o parceiro Paulo. Gosta de dançar e cantar, de caminhar na praia ou no mato, de astrologia e tarot. Viciada em séries e em livros. Gosta de trabalhar em equipe e de fotografar. Não gosta de cozinhar, mas adora comer.

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