“Temos todo o tempo que nos resta”

Psicanalista, doutora em Psiquiatra e uma das coordenadoras do Grupo de Estudos “Psicanálise e Envelhecimento”, da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, a doutora Cristina Amendoeira vai direto ao ponto: envelhecimento não é patologia. Por isso, é preciso encarar com sabedoria a passagem do tempo e viver intensamente todo o tempo que nos resta. Nesta entrevista, ela fala de libido, de autoanálise e de como lidar com as perdas ao longo da vida, sem mergulhar em depressão. Cristina Amendoeira é também médica do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro e participou, desde a sua implantação, do serviço para pessoas com Mal de Alzheimer e outros transtornos mentais na velhice do IPUB, o Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil.

Para Cristina Amendoeira, os 50 anos são um momento de reavaliação, de deixar coisas para trás, mas também de realizar alguns projetos que ficaram “na caixinha”. Fotos: Ana Lúcia Araújo.

Para Cristina Amendoeira, os 50 anos são um momento de reavaliação, de deixar coisas para trás, mas também de realizar alguns projetos que ficaram “na caixinha”. Fotos: Ana Lúcia Araújo.

O que deixar para trás quando a gente faz 50 anos? O que significa ter 50 anos do ponto de vista da alma?

Em 1905, Sigmund Freud (1856–1939) dizia que não seria recomendado o tratamento psicanalítico a pessoas com mais de 50 anos. Haveria uma rigidez do psiquismo e, portanto, não seria possível uma mudança ao se estabelecer o tratamento. Depois dele, Karl Abraham, em 1911, diz que o que importa é a idade da neurose pois a fixação de determinados mecanismos de defesa, de certos comportamentos enraizados tornam difícil tratar o paciente.

Mas a psicanalista Marialzira Perestrello (1916–2015), que morreu com 98 anos, gostava de dizer que aquele era o “erro” de Freud porque, por toda a sua vida, ele se autoanalisou, comprovando a possibilidade de elaboração das emoções até o fim. Quase no fim da vida, ele escreveu sobre um fato ocorrido mais de 30 anos antes, quando visitou a Acrópole, em Atenas (Um Distúrbio de Memória na Acrópole, de 1936). Nesse artigo, escrito um pouco antes de morrer, Freud admitiu que só conseguiu entrar em contato com essas emoções porque estava bem mais velho. E assim pode compreender um distúrbio de memória que sofrera, ao dar-se conta de que teria superado o próprio pai. Ali ele faz uma reelaboração de conflitos edípicos, de emoções relacionadas à figura do pai. Então, ele desdisse aquela história de que não dá pra tratar pessoas com mais de 50 anos. Nesse momento da vida, que pode ser chamado de crise da meia-idade, a gente se dá conta de que não dá mais para realizar todos os projetos nem todos os sonhos. Já perdemos alguns amigos e nos vemos diante de algumas limitações físicas.

Como lidar com isso? Seria a hora de perdoar, de relativizar, de livrar-se de amarguras?

Esse é o momento em que você já percorreu mais de metade da vida e não há tempo para realizar tudo. Então, você começa a priorizar. Algumas pessoas vivem ainda como se fossem jovens, como se fossem eternos, como se nunca fossem morrer ou tivessem todo o tempo do mundo. A gente tem todo o tempo que nos resta daqui em diante. Então, esse é um momento de reavaliação, em que muitas pessoas, ao se dar conta da finitude, podem adoecer emocionalmente, podem entristecer e têm dificuldades de elaborar suas perdas, seus lutos. E “luto” é ter que deixar coisas pra trás, é dar-se conta de que algumas realizações, alguns projetos não serão mais possíveis. Ou mesmo mudar de um ambiente ou situação familiar para outra, estranha. A gente muda de posição na vida, muitas vezes na família. Muitas mulheres nessa idade já são avós ou já vivem a saída dos filhos de casa. Muitas vezes é preciso desenvolver a capacidade de lidar com uma solidão maior, com a capacidade de estar só e de fazer com que esse momento possa ser uma coisa boa, possa ser um momento criativo em sua vida.

Nessa hora, pode vir a tristeza?

Ficar triste não é ruim. A gente entra em contato com situações em que entristecemos, mas se pode ter uma saída criativa para essa situação. Por exemplo, o fato de reconhecer limitações que podem surgir e admitir que nem todos os sonhos vão se realizar, deixar de lado coisas que, pelo decorrer da nossa vida, sabemos que já não são mais importantes. Vamos acumulando e também aprendendo com os erros. É um momento de pesar na balança e ver como a gente vai encarar, usar tudo isso como aprendizado para valorizar o que a gente tem a diante das escolhas. Um outro psicanalista dizia que, até um minuto antes de morrer, a gente pode mudar alguma coisa, transformar-se. E eu estou falando em relação aos 50, mas há os 60, os 70 anos. Há quem, aos 90, esteja pensando em como sair de casa, como continuar tendo algum tipo de atividade, de autonomia e independência, por mínima que seja. E isso é importante porque isso te mantém vivo.

“Até um minuto antes de morrer, a gente pode mudar alguma coisa, transformar-se”.

Pela sua experiência, quais as demandas mais comuns nessa idade quando a pessoa busca uma terapia?

Pessoas mais velhas, muitas vezes, têm vergonha de buscar ajuda, de falar de tristeza. É como se fosse um fracasso, uma falência. Acabam recorrendo a um médico clínico de sua confiança, e ele, se não compreende bem a situação, recorre à medicação para oferecer um alívio. Tem uma senhora que chega para mim e diz que está tudo bem, que os filhos são ótimos, mas ela tem uma angústia que ela não sabe exatamente o porquê. Às vezes, quando não conseguimos verbalizar, não damos conta emocionalmente dessas coisas, a marca acaba aparecendo no corpo. Não estou dizendo que se é culpado de ficar doente, mas o que a gente não fala, o corpo grita.

Como dizia Cecília Meireles*, aonde ficou perdida a minha face? Você olha e não se reconhece. O tempo passa e a gente não se dá conta.

*Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje, 

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio tão amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas,

eu não tinha este coração

que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa e fácil:

– Em que espelho ficou perdida

a minha face?

(Cecília Meireles)

Cristina Amendoeira

É diferente a forma como as mulheres se apropriam dessa questão da idade?

É diferente. Durante muito tempo, a mulher tem sua identidade do feminino ligada à questão da reprodução. E com a parada da capacidade reprodutiva, ela pode achar que é hora de pendurar a chuteira, que não serve mais para nada.

Tratar a cabeça ajuda a manter a libido?

Hoje a questão da sexualidade das pacientes é melhor acompanhada. Há pouco tempo, isso não acontecia, até por um preconceito. O psicanalista também ele, tem que lidar com suas questões mais arraigadas de que os pais não transam, de que avós não têm vida erótica, de que sexo é só para os jovens. De novo, encarar isso tem a ver com questões edípicas, relacionadas ao nosso desenvolvimento psíquico. E a gente se dá conta de que os pais têm um relacionamento íntimo, de que têm uma vida separada da nossa e que, de certa forma, a gente está apartado disso.

Então, reconhecer essa vida íntima de seus pais e o seu envelhecimento é poder aceitar o seu próprio envelhecimento. Que as mulheres mais velhas confirmem: aprende-se com a passagem dos anos que o processo e a experiência de apaixonar-se não se limita a adolescentes ou adultos jovens. As relações amorosas podem iniciarem-se em qualquer momento da vida. Um casal é capaz de manter sua intimidade sexual na idade avançada. A experiência erótica pode vir acompanhada de inseguranças iniciais (do tipo se se é suficientemente atraente para o parceiro ou potente, no caso do homem — coisas assim). A insegurança inicial pode ser vencida com a possibilidade de compartilhar esses sentimentos. Pode ser uma experiência nova de abertura, de tolerância como nunca antes se viveu. Mulheres e homens mais velhos alcançam uma liberação sexual maior do que quando jovens, permitindo-se jogos sexuais, fantasias e atividades mais prazerosas. É uma diminuição das inibições que inconscientemente carrega-se, relacionadas às atividades sexuais. Uma percepção de que o tempo que resta é mais curto e não merece que alimente-se inibições para adiar novas experiências.

Enfim, a intensidade do amor, da libido, persiste por toda a vida como potencialidade.

Hoje é muito comum pessoas chegarem aos 50 ou mais e terem pais bem mais velhos vivos e demenciando. Como encarar o desafio de cuidar dos pais velhos e, ao mesmo tempo, lidar com o seu próprio envelhecimento?

O envelhecimento não é sinônimo de doença. A passagem do tempo, claro, vai deixar marcas no corpo. Vamos perder, por exemplo, marcas de beleza. Para a mulher, uma vez que essas marcas são vendidas como padrão de sedução, é mais difícil lidar. Essa percepção nem sempre vai dar-se na menopausa, mas pode ser adiante, quando os filhos já saíram de casa, ou quando, no trabalho, ela já se pergunta se não é hora de reduzir a carga ou parar. Ou mesmo quando se dá conta de uma insatisfação, ela pergunta se não é hora de mudar. Depois dos 50, muitas mulheres mudam inclusive de opção sexual.

Cristina AmendoeiraPor que? Ela se dá conta das urgências da vida? Busca mais felicidade?

É como se ela valorizasse mais o tempo que tem. Muitas mantêm relacionamentos heterossexuais por uma questão de modelo. Chega a um momento da vida em que ela pensa: “Nunca alcancei o orgasmo, nunca tive muito prazer. Minha vida erótica foi rala…”

E há mulheres que têm coragem de mudar e, busca uma vida em comum com outra mulher, baseada em companhia e em outros valores, mas que são de libido também. O que é a vida erótica? É também a realização da satisfação.

É mais difícil envelhecer num mundo em que o padrão é a beleza jovem?

Vivemos num mundo muito narcísico, em que você tem que estar sempre muito bem, muito bonita. E estar sempre bonita é um modelo de beleza quase inviável. Pergunte às mulheres que recorrem a várias cirurgias plásticas, tentando alcançar o que não é mais possível. Para os homens, às vezes, isso acontece com a questão do trabalho. Ele tem que estar sempre numa situação de muito poder e quando isso vai muda, quando ele vai ficando para segundo plano em sua posição dentro do trabalho, é muito difícil de aceitar.

Do que precisamos desapegar para envelhecer bem? Que conselhos a senhora daria?

A valorização da psicanálise em relação a essa idade é exatamente para você ter uma maior liberdade de escolha, para você se conhecer melhor e ter um pensamento mais aberto em relação a si mesmo. Não tem conselho. Se cada um olhar para dentro, verá coisas incríveis que surgem. Simone de Beauvoir (1908–1986) dizia que era hora de ir atrás de um sonho anterior. “Por que você não vai se filiar a um partido político?”, propunha. Para aqueles que já chegaram aos 50, aos 60, e se aposentaram, mas deixaram sonhos fechados numa caixinha, guardado lá atrás, talvez seja o momento de se perguntar “Por que não?”. É assim também na vida sexual, no casamento. Você não tem que provar mais nada pra ninguém. É o momento de você refazer o contrato consigo mesma.

Volto a Marialzira Perestrello, psicanalista que morreu no ano passado, aos 98 anos. Ela disse que nunca pensou que fosse sobreviver à morte do marido, também psicanalista, e sobreviveu durante muitos anos. Os dois estavam sempre juntos. Naquele momento, ela começou a se dar conta de que poderia começar a escrever suas poesias, falar dos seus sentimentos… Outras pessoas vão pintar, outros vão cuidar do jardim… Muitas vezes, estamos tão soterrados em obrigações a vida inteira que não paramos para perguntar: “E eu dentro disso tudo?”. É lógico que a gente precisa sobreviver, ganhar dinheiro, mas, a essa altura da vida, já dá para pensar que este é um privilégio ter chegado até esse momento, principalmente com saúde. Então é porque não morreu, nem de susto, nem de bala, nem de vícios… (risos). Dá pra negociar muita coisa, mas, primeiro, você precisa saber para onde pode ir. Significa que você andou, correu, sofreu até o 50 anos. Ou foi muito feliz também até os 50. E tudo isso fica marcado em corpo, fica marcado na alma.

E como saber que é o momento de fazer um novo contrato consigo mesmo?

Se você tiver um pouquinho da sabedoria que o Bobo da Corte, em “O Rei Lear” (de William Shakespeare) aconselhava a se ter.**

Mas tem que ter cuidado porque você não pode ficar bloqueado, olhar para trás, viu que cometeu erros, que poderia ter seguido outros caminhos. Isso não leva a nada e esse é um cuidado que o psicanalista precisaria ter quando acompanha pessoas mais velhas. Porque a gente não “conserta” nada. Mas pode-se utilizar essa experiência para todos os outros dias, horas, minutos e segundos da vida. E a vida adquire uma qualidade diferente, um colorido diferente. Nem todo mundo precisa de análise. Algumas pessoas conseguem se autoanalisar, parar, pensar. E isso, muitas vezes, não precisa ser falado, pode ser intuído, sentido. Porque nem tudo é traduzido em palavras.

**O Rei Lear, que repartiu seu reino por suas três filhas , começa a perceber que foi ludibriado pelas duas mais velhas, Goneril e Regana. Elas fazem juras de amor e recebem seus quinhões da fortuna. Enquanto isso, a filha mais nova, Cordélia, recusa-se a esse papel e só reafirma o desejo de cuidar dele e é então deserdada. Após a renúncia, Goneril e Regana desprezam o pai, que passa por sofrimentos e privações. Ele praticamente enlouquece ao se dar conta de suas escolhas erradas e ouve do Bobo da Corte: “Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”.

Numa sociedade que valoriza o jovem, ao ficar velho você torna-se invisível e isso talvez seja mais doloroso para a mulher porque ela perde parte do seu capital de sedução. Como lidar?

Quando falamos de invisibilidade, estamos falando de discriminação e preconceito. E o pior preconceito é aquele consigo mesmo. Você se torna invisível porque você aceita esse lugar. Isso não significa negar a idade, não quer dizer que você tem que se vestir e se comportar como se tivesse 15 ou 20 anos. Tem que pensar que esta é mais uma etapa da vida e vamos ter que elaborar nossas perdas, nossos lutos. Algumas vezes, adoecemos emocionalmente. Mas é preciso entristecer, chorar os lutos e seguir adiante. Por vezes, constatamos que fica mais difícil. Se você ficar numa tristeza sem fim, numa angústia, então você precisa de ajuda.

Quando acende o sinal amarelo de que essa tristeza pode ter virado depressão?

Quando começa a atrapalhar as relações, a vida profissional. É quando se começa a perceber que essa tristeza está maior do que o objeto dela. Tem uma poesia linda da Elizabeth Bishop (1911–1979) sobre a arte de perder*** já utilizado num seminário porque não havia outro jeito de se falar disso. Perder algo traz angústia. Ela perdeu duas cidades, perdeu um rio, perdeu o mar e perdeu seu amor (ela e Lota Macedo Soares viveram juntas de 1951 a 1965. Em 1967, Lota tentou o suicídio). Mais adiante, é ela (Bishop) que vai entristecer de uma maneira patológica. Então era disso que se falava: o envelhecimento, em si, não é patológico. Algumas doenças vêm com o envelhecimento, mas são por esse desgaste natural do corpo. A maioria das pessoas vai viver a sua vida muito bem até o dia que elas param.

*** Uma Arte

A arte de perder não é nenhum mistério 

tantas coisas contém em si o acidente

de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,

a chave perdida, a hora gasta bestamente.

A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:

lugares, nomes, a escala subsequente

da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero

lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. Um império

que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)

não muda nada. Pois é evidente

que a arte de perder não chega a ser um mistério

por muito que pareça (escreve) muito sério.

(Elizabeth Bishop. Tradução de Paulo Henriques Brito)

Cristina Alves

Cristina Alves

Tem um gostinho especial por trabalhar em equipe. Carioca, criada no Méier, subúrbio do Rio, tem experiência de mais de 25 anos de jornalismo diário. Participou da cobertura e/ou edição de todos os planos de estabilização do Brasil pós-redemocratização. Sua relação com o jornalismo econômico começou quando era “foca” no “Jornal do Commercio” e ainda cursava a Escola de Comunicação da UFRJ, onde se graduou. Fez especialização em Políticas Públicas na UFRJ e tem MBA de Petróleo e Gás pela Coppe-UFRJ. Trabalhou ainda no “Jornal do Brasil” e em “O Globo”, onde foi editora de Economia entre 2007 e 2014, depois de atuar como repórter e subeditora. Cobriu por diversas vezes o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. Desenvolveu diversos produtos editoriais para plataformas impressa e digital. Hoje, é sócia da empresa Nau Comunicação. Casada, é mãe de João e Antônio. Adora mergulhar num bom livro.

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