Resistente como couro

O primeiro benefício que o artesanato trouxe para Maria Regina Soares foi ajudá-la a superar a síndrome de pânico iniciada depois que a livraria e o bar que ela abriu com um de seus irmãos, em Jeremoabo (BA), faliram. Os primeiros sintomas começaram depois que ela se mudou para Prado, no sul baiano, onde o irmão mais velho morava e tentou uma nova atividade comercial, mas viu que o movimento de fregueses terminava com a temporada de verão.

Outra mudança de cidade – das muitas que fez na vida – a colocou no rumo para se transformar numa profissional bem-sucedida. Hoje, aos 51 anos, 16 depois de começar a fazer cursos de artesanato no Armarinho Capricho, em Teixeira de Freitas (BA), Maria Regina tem uma boa renda e espera ter espantado de vez o fantasma da falência.

Foram os trabalhos de biscuit, bordados e, principalmente, de couro de peixe que a fizeram ser contemplada em editais setoriais de economia criativa do governo estadual e implantar o projeto Ecotilápia, cujos feitos e produtos passaram a ser conhecidos através de um site e de páginas eletrônicas nas redes sociais. Feitos notáveis realizados graças a disposição empreendedora.

FREQUENTES MUDANÇAS

Maria Regina é um dos quatro filhos – dois homens e duas mulheres – de dona Maria Francisca. Nasceu em Jeremoabo, em 1966, e deixou a cidade natal aos quatro anos para ir morar com a mãe em Juazeiro. Quando terminou o segundo grau fez vestibular em Salvador. Sem sucesso no exame, começou a trabalhar em uma loja de quinquilharias, pertencente a um comerciante chinês, na Avenida Sete, no Centro. Depois de um período sem progressos, voltou a Juazeiro.

A pedido da irmã que se equilibrava entre criar dois filhos e administrar uma pequeno comércio, foi morar em Petrópolis (RJ). De volta à Bahia, o irmão do meio “inventou de morar em Jeremoabo”. E Maria o seguiu. A futura artesã tinha 27 anos à época. Os Soares começaram a tocar um trailer de alimentos.

Aproveitando a experiência de Maria Regina em lojas comerciais abriram também a papelaria Papier e o bar Alternativa, dois empreendimentos que não deram certo. E as duas Marias, mãe e filha, tomaram o rumo do sul do estado.

Com síndrome de pânico e tomando um remédio receitado em um plantão médico, Maria Regina fez o curso de macramê (tecelagem manual). Ganhou gosto e se inscreveu no de pintura de telas e de biscuit (trabalho com massa de modelar fina).

Estava nessa rotina quando a coordenadora do curso se afastou por conta de uma cirurgia de lipoaspiração. De uma hora para outra passou de aluna à professora e assumiu o lugar da amiga. Teve ainda que aprender na raça a fazer sabonetes, a produzir e pintar velas. Mas foi o trabalho no Armarinho Capricho que a libertou da doença que a atormentava.

Dois anos depois, voltou para Paulo Afonso, onde está até hoje.

A DESCOBERTA DO COURO

Paulo Afonso está situada a 12 quilômetros da cidade de Glória. Estas são as cidades que mais produzem tilápias na Bahia. Este ano, o antigo município de Santo Antônio da Glória se transformou no maior produtor nacional deste tipo de peixe com 17 mil toneladas/ano. A segunda colocada em produção é Paulo Afonso. Em 2016, foram 763 mil toneladas, segundo o IBGE.

A tilápia, originária do rio Nilo, na África, é o peixe mais consumido no Brasil e o quarto em todo o mundo. O atual contexto é diferente de quando Maria começou a se interessar pelo artesanato de couro, cinco anos atrás, cidades do Paraná, São Paulo e Ceará lideravam o ranking.

O interesse pelo couro surgiu depois que Maria Regina Soares foi fazer o curso de 12 dias de modelagem de pequenos artefatos, no Senac, em Piranhas (AL), em maio de 2011. A formação, na verdade, era de produção de bolsas de tecidos diversos. Lá, a artesã comprou couro e produziu as duas primeiras carteiras, mas ficou interessada em saber como era o processo de curtimento.

Primeiro, pediu ajuda a um primo que cursava engenharia de pesca. Ganhou dele uma apostila, mas não conseguiu curtir direito. Passou, então, a insistir com a professora Susana Menezes Luz, hoje diretora do campus Paulo Afonso da Uneb, para que ela lhe ensinasse o processo. Em setembro, recebeu a notícia de que seria encaixada em um curso a ser ministrado na semana de engenharia, na universidade.

O processo de curtimento e produção de peças leva 15 dias e pode ser dividido em 10 etapas: lavagem da pele, remolho (mergulho da pele em líquido para amolecer ou modificar sua composição), caleiro (mistura com cinza, cal e amônia), descarne, descalcinação (limpeza e eliminação de substâncias das peles que virarão couro), curtimento no angico (ou jurema branca ou caju), engraxe com óleo vegetal, secagem, amaciamento (feito com martelinho de borracha e amaciando o couro na mão) e feitura das peças.

Este método trabalhoso é um dos motivos do esvaziamento da Agappa (Associação do Grupo de Artesãos Produtores de Paulo Afonso), criada e presidida por Maria Regina. A princípio, a entidade tinha outras oito sócias, todas colegas do curso de curtimento. Hoje, Maria é a Agappa e mantém os impostos em dia na esperança de reativá-la.

“Sou a única a trabalhar com artesanato de couro de peixe na cidade, talvez a única na Bahia. No início, dividíamos o que ganhávamos em partes iguais. Não era muito dinheiro. Nessa época, de oito ficaram cinco. Elas achavam que era muito trabalho e pouca remuneração e procuraram outras formas de artesanato”, conta Maria.

DOAÇÃO DE PELES

O Grupo Netuno Pescados, maior produtor de tilápias do Brasil e dono de criatórios na região, foi o primeiro a fornecer peles gratuitamente para a artesã. Depois, viu uma forma de lucrar com os subprodutos dos peixes processados na indústria de Paulo Afonso, transformando-os em farinha e óleo para ração animal. Já as peles passaram a ser exportadas para a Europa.

A parceria com empresa agora vale apenas quando Maria Regina dá cursos de capacitação. No último, recebeu quatro placas de seis quilos de peles congeladas para ensinar curtimento e artesanato aos alunos.

Para não ficar sem matéria-prima, Maria recorreu aos peixeiros das feiras-livres da cidade. Seu Reginaldo e Seu William vendem o filé da tilápia e doam as peles – em média 10 quilos por semana – para a artesã. Ela retribui a generosidade dando, de vez em quando, brindes e presentes para eles. Há 15 dias, os dois receberam capas de couro para seus celulares.

Maria também costurou um acordo com a prefeitura, que se comprometeu a melhorar as instalações das barracas de peixes, com os feirantes tendo como contrapartida a manutenção das doações das peles.

Sem doadores, os produtos da empreendedora ficariam muito caros. A bolsa vendida a R$ 65 consome de 15 a 20 courinhos, como são chamadas as peles após o processo de curtimento. No Mercado Livre, na internet, cada um é vendido a R$ 10.

ECOLOGIA E SUSTENTABILIDADE

Os produtos mais vendidos da produção de Maria Regina com couro de tilápia são os acessórios. Foto: Meus Sertões

O projeto Ecotilápia foi contemplado com um dos editais de economia criativa. Tem esse nome por dar prioridade ao uso de substâncias naturais no processo de curtimento e tingimento, feito com açafrão e urucum.

Os produtos mais vendidos são blocos, tiaras, porta-cartãos, carteiras, porta-moedas e, principalmente, bijuterias:

“As mulheres gostam muito. Os objetos são resistentes e duráveis. Eles ficam mais maleáveis com o uso. E têm cheiro de couro e não de peixe” – explica a microempresária, dona de uma lojinha no aeroporto de Paulo Afonso que funciona às segundas e sextas-feiras, dias que chegam voos de Salvador.

Os trabalhos com couro de tilápia estão cada dia mais valorizados. Maria passou a fornecer nos últimos meses cintos e alças de vestidos e de macacões para a grife local Clara Arruda. Para a coleção mais recente foram 150 cintos e 100 pares de alças.

No momento, além da mãe Maria Francisca, 81 anos, que costura as peças, e o irmão Paulo, a artesã trabalha com duas mulheres terceirizadas que lhe ajudam na limpeza das peles. Elas recebem por produção e já fizeram parte do projeto. Pediram para retornar ao verem que o negócio está prosperando.

“Hoje vivo do artesanato. Com os projetos e as oficinas que fiz comprei minhas máquinas. O equipamento, posso dizer, foi comprado com o trabalho com as tilápias: máquina de costura reta, ziguezague, máquina de coluna, de pregar botão. Recentemente, adquiri a máquina de cortar tiras de couro para fazer as alças e cintos” – conta com entusiasmo.

Além do apoio da organização não-governamental Agendha (Assessoria e Gestão em Estudos da Natureza, Desenvolvimento Humano e Agroecologia), e da prefeitura, a Ecotilápia participa do projeto Brasil Original do Sebrae, que visa reposicionar o artesanato mercadologicamente, capacitando os artesãos e vendendo os produtos em lojas abertas em algumas das maiores cidades do estado – Juazeiro, Feira de Santana e Salvador.

CASAMENTO COM A MÃE

Para manter o ritmo, Maria Regina chega a trabalhar 15 horas por dia, inclusive aos domingos. Isto ocorre quando recebe encomendas e nas vésperas das grandes feiras.

“Vivo para o trabalho mesmo” – conclui, sem aparentar arrependimento.

Fora dos períodos mais conturbados, encontra tempo para ver um filme à noite.

“Quando a gente diz que vai para uma feira, muita gente pensa que vamos passear, mas é quando trabalhamos até se acabar. Os rendimentos nesses grandes eventos variam de R$ 700 a R$ 2000” – acrescenta.

A microempresária reconhece que dona Maria Francisca, que a acompanha desde o início dos trabalhos, é fundamental para seu sucesso. Ela conta que todos os irmãos casaram e ela ficou com a mãe que participa de todas as suas decisões:

“A gente tem uma amizade muito grande, um companheirismo. Ela me ajuda em tudo, mesmo com 81 anos. A gente tudo se combina em relação a comprar e a vender. E nos damos muito bem, graças a Deus! Eu me casei com a minha mãe” – diz, rindo.

Dona Maria Francisca sempre foi de costurar e consertar roupa para a família. Além das costuras com o couro, faz pano de prato para vender.

“A gente trabalha com tilápia, cujas encomendas crescem a cada dia, mas não deixa de fazer outros tipos de artesanato. Quando pega a encomenda de alguma coisa que não seja couro, a gente faz. Lá na loja do aeroporto mesmo, temos outras peças como a miniatura da Igreja de São Francisco. Tenho até uma cliente, empresária, que compra várias para revender em seu estabelecimento”

Os planos de Maria Regina para o futuro são continuar com oficinas, ensinando pessoas carentes, ter um espaço onde as artesãs que forma possam trabalhar e também começar a produzir calçados de couro de peixe, que são valorizados no Brasil (os preços variam de R$ 110 a R$ 320) e no exterior.

Maria Regina vende seus produtos para qualquer lugar do Brasil, através do site www.ecotilapia.com.br , da página no Facebook e do zap 75– 9 9191-9124. 

Paulo Oliveira, especial para Mulheres50mais

Paulo Oliveira, especial para Mulheres50mais

Paulo Oliveira, 54 anos, é jornalista há 35. Atualmente, edita as diferentes plataformas do projeto Meus Sertões, que consiste em retratar as cidades e personagens do semiárido brasileiro, a partir de Queimadas (BA), de onde partiram as expedições do Exército que arrasaram Belo Monte — cidade criada por Antônio Conselheiro. Suas fotos, textos, vídeos e reportagens são publicadas no site Meus Sertões, no Instagram, no Facebook e no You Tube. Paulo trabalhou nas principais redações do Brasil e ganhou prêmios como Vladimir Herzog de Direitos Humanos e Fenaj.

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