Pelas mãos das ‘comadres’

REPORTAGEM ESPECIAL

Histórias de doação e amor de três parteiras do Pará

Os dicionários da língua portuguesa dão duas definições para a palavra puxação: a formal, que significa puxar ou mover alguma coisa para perto de si, e a informal, que é bajulação. Assim, foi com grande curiosidade que transpus o portão da casa verde água da parteira Cristina Rocha – na comunidade Morada Nova, a pouco mais de 50 Km de Belém – para acompanhar uma puxação em uma jovem grávida.

Em novembro de 2017, durante uma viagem ao interior do Pará, entrevistei parteiras e grávidas nos municípios de Santa Bárbara, Castanhal, Santa Maria do Pará e Abaetetuba. Queria saber se a interiorização da medicina havia eliminado as parteiras tradicionais ou se continuavam em atividade. Para minha surpresa, elas permanecem atuantes até nas cercanias da capital do Estado, mas adaptadas a um novo papel.

As grávidas fazem o pré-natal com médicos no posto de saúde e dão à luz em hospitais públicos, mas recorrem às parteiras para a puxação, que consiste em massagens pélvicas para ajustar ou reposicionar o feto no útero. Além das massagens, elas fazem tratamentos caseiros, com infusões e emplastros.  Essa espécie de “pré-natal paralelo” não é bem vista pelos médicos da região, que vêem nas massagens um risco de descolamento da placenta. Mas, a força da tradição se sobrepõe ao diagnóstico da medicina.

Os partos em casa, sem a presença do médico ou da enfermeira obstétrica, ainda são frequentes nas regiões isoladas e de difícil acesso, como em parte do arquipélago do Marajó, onde as parteiras tradicionais são a única opção para as mulheres que vivem nas comunidades ribeirinhas, isoladas nos longos meses de chuva do inverno amazônico, que vai de dezembro a abril.

Ouvir de uma parteira a descrição das emoções do parto foi especial para mim, que também vim ao mundo pelas mãos de uma delas, no interior de Minas Gerais, há 64 anos. A mulher que me aparou se chamava Antônia. Ela e minha mãe se tratavam por comadres e eu e meus dezesseis irmãos a chamávamos de madrinha e lhe pedíamos a benção sempre que a encontrávamos. Dona ‘Antonha’ era uma mulher muito respeitada no lugarejo onde nasci, assim como são respeitadas e reverenciadas as parteiras que encontrei no Pará.

“Dom da avó”

Para engravidar, Noemi recorreu às massagens, chás e infusões da parteira Cristina Rocha

Para engravidar, Noemi recorreu às massagens, chás e infusões da parteira Cristina Rocha

Cristina Rocha mora no município de Santa Bárbara em uma casa de madeira com pintura de aves amazônicas na fachada. Embora não tivesse sido avisada de minha visita, demonstrou ter ficado feliz pela oportunidade de contar sua história e me levou para uma varanda nos fundos, que também serve de cozinha. A disposição dos cômodos lembra as construções das populações ribei

rinhas, com cozinha no quintal cercada de açaizeiros.

Ela descobriu a vocação para parteira aos trinta anos – contava com 48 em 2017 – e acredita ter herdado o “dom” e os conhecimentos da avó. Umbandista, ela também acredita ser orientada por duas entidades parteiras: a cabocla Mariana e o encantado José Raimundo. “Não sou mãe de santo nem filha de santo, porque só existiu uma mãe de santo, Nossa Senhora, e um filho de santo, Jesus”, afirmou.

As parteiras entram em ação assim que a futura mãe desconfia estar grávida. Cristina assegura que consegue detectar a gravidez apenas pelo exame da barriga e pela pulsação no umbigo. “Consigo saber o tempo de gestação e o sexo da criança. Uma sobrinha estava no começo da gravidez e queria muito um menino, porque já tinha quatro filhas. Examinei a barriga dela e falei: infelizmente é uma menina. Você precisa criar tua filha. Ela retornou à minha casa quando teve o bebê, com uma menina nos braços”.

A conversa foi interrompida pela chegada de Noemi Rodrigues Cavalcante, de 31 anos, grávida de três meses do primeiro filho. Casada havia seis anos, a jovem demorou a engravidar e buscou a ajuda da parteira.  O tratamento foi feito com massagens, chás e infusões feitas com cascas das árvores de ipê roxo, barbatimão, verônica e uxi amarelo. A parteira também a ensinou a identificar os dias férteis e recomendou que tivesse relações sexuais nestes dias se quisesse engravidar. Após seis meses de tratamento, Cristina diagnosticou a gravidez, confirmada pelo exame de sangue.

A puxação

As duas me permitiram acompanhar o ritual. A parteira colocou a grávida deitada sobre um colchão, esticou os braços dela acima da cabeça para alongar ao máximo o abdômen, untou as próprias mãos com óleo de andiroba e massageou longamente a região do útero. Depois, ergueu várias vezes as pernas de Noemi e voltou a massagear a barriga e quadris, enquanto fazia uma oração silenciosa. Já era quase meio-dia e o galo do quintal cantava insistentemente, fora da hora.

“Apalpando, eu vejo se está tudo bem com a placenta e se o bebê está bem posicionado. Mas, é preciso saber puxar para não causar dano”, explicou Cristina.  Ela própria extrai o óleo da andiroba, ao qual acrescenta sumo de uma rosa conhecida localmente por “flor de todo o ano”. Também indica pílulas de sulfato ferroso para as que relatam sintomas de fraqueza.

No município de Santa Bárbara, Cristina recebe em casa mulheres que querem ter filhos. Pela pulsação no umbigo, diz que é capaz de determinar sexo e tempo de gestação.

No município de Santa Bárbara, Cristina recebe em casa mulheres que querem ter filhos. Pela pulsação no umbigo, diz que é capaz de determinar sexo e tempo de gestação.

As grávidas recorrem a Cristina para mais dois rituais pós-parto: o enterro do coto umbilical e o “fechamento” do quadril.  Se a mãe não pretende ter mais filhos, a parteira tem um ritual específico para o enterro e rezas que não são reveladas. O do “fechamento do quadril” varia de uma parteira para outra. Algumas enfaixam a barriga da mulher com um lençol, na crença de que isto fará o útero retornar ao tamanho anterior ao da gestação. Outras a colocam deitada de lado e sentam-se sobre ela para pressionar o fechamento da bacia. Cristina é adepta da segunda alternativa.

A emoção do parto

A pouco mais de dez quilômetros de Morada Nova, no povoado São Paulo, entrevistei duas parteiras experientes e soube da existência de outras três em localidades vizinhas. Elas deixaram de fazer partos em casa depois que foi construída uma estrada vicinal que permitiu o acesso relativamente rápido aos hospitais da região, mas continuam muito requisitadas para as puxações e para os tratamentos caseiros.

Descendente dos índios Kayapó, Raimunda Nascimento da Silva, de 63 anos, ficou cega aos cinquenta anos em razão do glaucoma, mas seguiu fazendo a puxação. A cegueira, segundo ela, não afetou sua capacidade de trabalho, que depende sobretudo da sensibilidade nas mãos. A entrevista foi feita `a sombra de uma mangueira, na frente da casa. Sua voz é triste.  Porém,  a tristeza que carrega não tem a ver com a cegueira, mas com a rudeza do marido, que não a poupou dos trabalhos domésticos nem no dia em que ficou cega. Ela fez uma detalhada descrição de cada parto e das emoções que sentiu, como se os revivesse e os visualizasse naquele momento. Nós duas não contivemos as lágrimas.

– Como a senhora se tornou parteira?

No povoado de Morada Nova, Raimunda Nascimento Silva conta com emoção os detalhes de cada parto. Foto: Elvira Lobato

A descendente dos índios Kayapó Raimunda Nascimento Silva conta com emoção os detalhes de cada parto que ajudou a fazer no povoado de Morada Nova

“Desde mocinha eu tinha curiosidade em aprender e vontade de ajudar as pessoas. Comecei fazendo puxação em braços, pernas e pés deslocados. Fazia os movimentos, por minha própria cabeça, e ficava muito feliz ao ver que conseguia recolocar ossos no lugar e aliviar dores. Depois comecei a fazer puxação em grávidas, para recolocar os bebês na posição certa. Uma noite, uma mulher entrou em trabalho de parto antes da hora prevista, e o marido veio me pedir ajuda. Eu me lembro bem. Me senti muito feliz e emocionada de estar acudindo aquela pessoa, mas foi muito difícil, porque eram gêmeos. Ela desmaiou várias vezes, eu dava tapas na cara dela para acordá-la e gritava: v’ambora minha filha! Você vai ter o bebê!. Tinha mais duas mulheres no quarto. A gente rezava: meu Deus, ajude essa mulher. Era o primeiro parto que eu fazia, e não queria que acontecesse o pior. Ela pensava que era só um bebê, mas eram dois. Ela desmaiava e voltava. O segundo tinha uma mancha vermelha na testa. A avó disse que era mal sinal e que o bebê ia morrer. Ele não chorava. Coloquei a boca no narizinho e na boca dele e chupei. Ele vomitou o sangue que tinha engolido, e chorou. Meu coração quase saiu pela boca de felicidade e de emoção.”

Raimunda vive com o marido, Manoel, em uma pequena casa de fachada branca, a cerca de 50 metros do posto de saúde. Parte da sala é usada como ponto de venda de biscoitos e de refrigerantes para completar a renda obtida com o plantio de milho e de mandioca. Ela ainda enxergava quando passou a frequentar a Igreja Assembléia de Deus e foi aconselhada pelo pastor a não fazer mais partos em casa. O marido passou a não ver a prática com bons olhos.  “O pastor nos mostrou que ela podia ser responsabilizada se a mãe ou o bebê morressem. E agora temos médico por aqui. Não faz sentido ter filho com parteira em casa”, disse ele. Ela reprovou o marido silenciosamente com um balançar de cabeça.

Bebês e bonecas

Uma trilha de chão batido leva à casa da parteira Paula Pastana de Farias, de 70 anos. Ela vive em uma casinha de tijolos aparentes, na comunidade São Paulo, praticamente nos fundos do posto de saúde municipal, com uma filha, o genro e o primeiro filho do casal. O bebezinho dormia na rede enquanto eu a entrevistava.

Dona Paula é analfabeta e mãe de oito filhos. Sete deles vieram ao mundo pelas mãos da avó dela, que também era parteira e lhe ensinou a “partejar”, ou seja, a auxiliar as parturientes no parto. Ela só foi ao hospital para o último filho, que estava atravessado no útero. O parto em casa colocaria a vida de ambos em risco. Foi a avó, igualmente analfabeta, que diagnosticou a gravidade da situação e a levou ao hospital, onde foi submetida a uma cesariana. 

Assim que entrei na casa, percebi a profusão de bonecas na sala e no quarto dela. Dona Paula as enfeita com vestidos e adereços de crochê. Nascida em uma família muito pobre, não teve brinquedos na infância e seguiu sendo uma menina à procura de bonecas ao longo da vida. Foi mãe pela primeira vez aos treze anos e aos vinte assumiu o lugar da avó como parteira em um povoado no município de Capanema. Calcula ter feito “bens uns quinhentos partos” ao longo de quase meio século. “Não faço mais. Já não há necessidade, por aqui, de fazer parto em casa. Continuo fazendo a puxação e os outros tratamentos”. Um rapaz passou em frente à casa quando conversávamos e lhe pediu a benção. “Esse foi um dos que aparei”, acrescentou orgulhosa.

Paula disse que consegue diagnosticar a gravidez a partir de dois meses de gestação apenas com massagens no ventre da mulher. Para as grávidas com risco de aborto, receita banhos com folhas de imbaúba branca e de laranja da terra. Não estabelece um preço pelos serviços, mas as clientes lhe dão algum dinheiro – em geral, R$ 10 por puxação – ou produtos, como ovos e galinha.

O cheiro do parto

Uma questão sempre me instigou nos partos feitos em casa no interior: como um evento tão extraordinário acontece sob os olhos e ouvidos do restante da família? Depois que nasci, minha mãe teve mais sete filhos em casa e não tenho registro na memória daqueles momentos. Nunca ouvi um choro, um lamento ou um grito que indicasse a chegada de um bebê. Na minha casa, se o parto ocorria durante o dia, as crianças eram levadas para as casas de vizinhos ou parentes. Mas, se aconteciam à noite, a rotina não se alterava, o que sugere que minha mãe suportava suas dores em silêncio.

Dona Paula detalhou o ritual dos partos a que assistiu. Em geral, era chamada às pressas pelos maridos. Muitas vezes, isso acontecia no meio da noite. Ela deixava o próprio marido e os filhos em casa e seguia o marido da outra: a cavalo, de canoa ou pé, na escuridão da noite.

“Durante o parto, defumava o quarto com alecrim e alfazema, para deixar o ambiente perfumado e relaxado. No Pará, diz-se que o parto cheira a ‘pitiú’, que é o odor característico dos peixes. A mistura de sangue e de líquido amniótico deixa um ranço no ambiente. “Mas, é só na hora do nascimento. A gente troca a roupa de cama imediatamente e lava os lençóis. Quando o marido entra no quarto, só sente o cheirinho do bebê”, disse ela.

Algumas parteiras optam por fazer o parto com a mulher deitada, mas dona Paula as colocava de cócoras sobre a cama, a qual forrava com uma esteira trançada em casa com a fibra da bananeira.  Ela esclareceu que indicava essa posição, mas a grávida tinha liberdade de escolha. Nos partos mais demorados, algumas parteiras fazem uma defumação com brasas para aquecer a região pélvica e aliviar as dores da parturiente. Depois do parto, dão laxante para “limpar o corpo por dentro”.

O trabalho da parteira não termina com o nascimento do bebê. É de praxe ela ficar pelo menos mais dois dias na casa, cuidando da roupa do recém-nascido e da alimentação da mãe. Sete dias depois do parto, ela retorna para o fechamento do quadril.

Encerrei o encontro com a terceira entrevistada convencida de que o trabalho da parteira é um ato de amor e de solidariedade e por isso são respeitadas e reverenciadas em suas comunidades. Embora recebam alguma remuneração ou presentes pelo trabalho, não é o dinheiro que as motiva a prestar socorro. O parto em casa cria um vínculo definitivo entre entre a parteira e a mulher assistida. E é por isso que  viram “comadres”.

A banalização das cesárias

Em abril de 2017, o Ministério da Saúde anunciou como uma grande conquista a reduçãoda média nacional de cesarianas de 57% para 55,5% ocorrida em 2015. Os dados de 2016 ainda não foram oficialmente compilados, mas segundo a Coordenadora da Saúde da Mulher do ministério, Esther Vilela, os percentuais se mantiveram na mesma faixa do ano anterior, o que ainda faz do Brasil o campeão mundial de cesarianas. “Parece pouco, mas a redução de 1,5 ponto percentual, dentro de um universo de 3 milhões de partos por ano, é uma grande vitória”, disse ela em entrevista ao site Mulheres50Mais.

Existe um esforço, dentro e fora do governo, para valorizar o parto natural, mas a onda de cesarianas, uma vez instalada, é difícil de ser revertida. Depois que a mulher tem o primeiro filho por cirurgia, dificilmente fará os próximos por via vaginal. Vários fatores são apontados como causa do aumento de cesarianas, entre eles, a comodidade dos médicos – que não ficam sujeito à longa demora dos partos normais – e da própria parturiente, por medo da dor. A laqueadura de trompas é outro fator indutor do parto cirúrgico. Um fator adicional para o alto volume das cirurgias é a remuneração dos médicos por produtividade.

O aumento das cesarianas é um fenômeno internacional. A Organização Mundial de Saúde chegou a indicar o percentual de 15% de cesarianas como ideal, mas reavaliou a posição e aconselhou que cada pais estabeleça seu parâmetro possível. No Brasil, essa meta seria de 30%.

Em alguns municípios do interior do Pará, como Xinguara e Santa Maria (o primeiro, no sudeste, e o segundo, na região central do estado) o parto normal quase foi abolido. Ambos alcançaram cerca de 80% de cesárias. Mas, onde há parteiras em atividade, as estatísticas se invertem. Em Breves, no Marajó, existem duzentas parteiras cadastradas que atuam nas comunidades ribeirinhas. Em 2016, nasceram 2.513 crianças naquele município e 85% dos partos foram normais. Em Bagre, também no Marajó, o índice de parto normal foi de 91%.

O que explica tamanha disparidade em um mesmo estado?. “O diferencial está na presença da parteira. Ela é um grande estímulo ao parto natural”, diz o secretário de Saúde de Breves, Amaury Soares Cunha. Com 120 mil habitantes, a cidade dispõe de dois hospitais públicos e recebe pacientes de vários municípios em seu entorno.

Segundo o secretário, a cultura do parto normal está estabelecida entre os ribeirinhos, o que se reflete no atendimento hospitalar. Breves não possui hospital privado e a orientação nos hospitais públicos é pelo parto normal. “Aqui não temos agendamento prévio de partos. Cesariana é só em emergência”, afirmou.

No extremo oposto do Marajó, em termos estatísticos, está Santa Maria do Pará, uma cidade de 25 mil habitantes, a 120 Km de Belém. Pelos dados preliminares do Ministério da Saúde, 73% dos partos realizados naquela localidade em 2016 foram de cesarianas. Visitei a cidade e tive acesso aos registros do Hospital da Ordem Terceira, o único do local, sobre os partos efetuados de janeiro a setembro de 2017, período em que a média de cesárias subiu para 83%. No mês de agosto, o hospital realizou 22 cesarianas e nenhum parto normal. O hospital contava na ocasião com um plantão semanal de médico obstetra e as cirurgias eram previamente agendadas para o plantão dele.

As cesarianas das índias

A parteira Judite Vital da Silva teve oito dos seus 11 filhos em casa, amparados por parteiras, e seus netos nasceram de cesariana em hospitais. Foto: Elvira Lobato

A parteira Judite Vital da Silva teve oito dos seus 11 filhos em casa, amparados por parteiras, e seus netos nasceram de cesariana em hospitais

A menos de dez quilômetros de Santa Maria do Pará fica a aldeia Jeju, dos índios Tembé, onde 72 famílias vivem da pesca e da agricultura. Eles ainda preservam hábitos culturais de sua etnia, mas já desaprenderam sua língua, o Tenetehara.  Na aldeia Jeju, entrevistei uma índia da minha idade (64 anos): Judite Vital da Silva, mãe de onze filhos, oito deles nascidos em casa com parteiras. Dos três partos que ela fez em hospital, só um foi cirúrgico porque o bebê estava atravessado no útero. A banalização das cirurgias pode ser exemplificada pelos partos de seus descentes: todos os netos dela nasceram de cesariana.

O segundo filho dela, Almir Tembé, é um liderança na aldeia. Ele deu sua visão pessoal sobre o que vem ocorrendo: “A medicina veio como um rolo compressor, esmagando o conhecimento tradicional. E isso traz sérias consequências. O conhecimento científico deveria andar lado a lado com o conhecimento tradicional”, disse ele.

Judite lembra detalhes de seus partos. No primeiro, chovia muito e o marido foi a cavalo buscar a parteira, dona Noca. Ela chegou também a cavalo, no inicio da noite. Quando amanheceu, aconselhou o marido a levar a mulher para o hospital em Castanhal, porque era o desafio além da capacidade dela. O menino pesava cinco quilos, e nasceu de parto normal no hospital.

O terceiro filho foi uma aventura especial. A família morava isolada na zona rural e ela estava na mata quando entrou em  trabalho de parto. Caminhou horas a fio e chegou em casa “toda mijada e tremendo”. O marido saiu em disparada a cavalo em busca da parteira mais próxima, Dona Diarina, que colhia pimenta no momento em que ele a encontrou. Ela parou os afazeres e correu para prestar ajuda. “Quando ela chegou, só deu tempo para lavar as mãos e aparar o meu filho”.

Judite fala das quatro parteiras que a assistiram com muito carinho. “Foram maravilhosas e me senti muito segura com todas elas. Nenhuma me negou socorro quando precisei. O parto em casa é um momento delicado, de muita reza. A gente está ali na mão de Deus. Me lembro que elas tinham uma reza muito bonita para ajudar a gente a desocupar (parir). Sou muito agradecida a todas.”

Uma luz no fim do túnel?

 O município de Xinguara, a 780 Km de Belém, registrou 82% de cesarianas em 2015, mas conseguiu diminuir a taxa para 72% em 2017, após a substituição de um obstetra  adepto incondicional da cirurgia por um jovem médico defensor do parto normal. “Um único médico pode influenciar uma geração de mulheres”, afirmou a enfermeira obstetra Maiara Mendes, diretora do hospital municipal da cidade.

Questionada sobre a causa da disparidade entre os indicadores de Xinguara e Breves, ela não hesita em apontar a presença de parteiras como um fator para a predominância de partos normais no Marajó. Xinguara é um município jovem, emancipado em 1982. Sua população é formada por migrantes de Goiás, Tocantins e do sul do país. Antes, era uma região de florestas, que foram derrubadas para dar lugar a extensas fazendas de criação de gado.

Segundo a diretora, não há aldeias indígenas nem comunidades ribeirinhas no município, o que explica a ausência da parteira tradicional. A cidade se expandiu e atraiu rapidamente uma rede de serviços de saúde. Praticamente, não existe o parto em domicilio.

Maiara assumiu a direção do hospital, em fevereiro de 2017, com o propósito de incentivar os partos normais. Uma das medidas foi a realização de palestras para grupos de grávidas, por enfermeiras obstetras, para mostrar que o parto é um ato fisiológico para o qual o corpo da mulher está preparado.

Os avanços colhidos nos últimos dois anos são atribuídos a um conjunto de medidas tomadas pelo Ministério da Saúde, como o projeto Rede Cegonha. Um de seus pilares é a implantação de Centros de Parto Normal para atendimento de parturientes de baixo risco que dão à luz acompanhadas apenas por enfermeiras, sem o médico. As construções reproduzem o ambiente doméstico para que o parto se dê da forma mais natural possível. Dezoito centros estavam em funcionamento no final de 2017, mas há muitos em construção nos estados. O Piauí inaugurou cinco unidades no ano passado e Rondônia inaugurou duas.

A implantação de casas de parto sob o comando de enfermeiros não é pioneira. No final dos anos 1990, o governo Fernando Henrique Cardoso adotou essa política, mas houve forte resistência dos médicos, que chegaram a entrar com ações judiciais para impedir o funcionamento delas.

Na viagem pelo interior do Pará, visitei o Centro de Parto Normal Haidee Pereira da Silva, na cidade de Castanhal, que foi inaugurado em outubro de 2016. A unidade, de cinco quartos, funcionava com capacidade ociosa, o que é um indicador dos desafios para o reestabelecimento da cultura do parto normal. No primeiro ano de funcionamento, a casa realizou 130 partos. “A demanda ainda é baixa porque a mulher tem de ser conscientizada no pré-natal das vantagens do parto humanizado. E os resultados são lentos”, resumiu Fabiane Lima da Silva, enfermeira obstetra e a coordenadora da unidade.

Da recepção, podia-se ouvir os gritos de uma mulher em trabalho de parto. Uma jovem grávida do primeiro filho chegou acompanhada da mãe para conhecer as instalações e não pareceu assustada. “Estou convencida de que o parto normal vai ser melhor para o meu filho e para mim”, disse resoluta. A convicção da jovem indica haver uma luz no fim do túnel.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

           

 

 

 

 

 

Elvira Lobato

Elvira Lobato

Mineira, de uma família de 17 irmãos, foi criada na zona rural de Pitangui, na região do Cerrado. Aos 19 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde participou da resistência à ditadura e construiu sua carreira de repórter. Formada pela UFRJ, atuou na imprensa escrita por 39 anos, 27 deles na “Folha de S. Paulo”, onde fez parte do núcleo de repórteres especiais de 1992 a 2011, quando se aposentou do jornalismo diário para se dedicar a projetos pessoais. É autora do livro “Instinto de Repórter”, sobre seus métodos de investigação jornalística. Está no ranking de jornalistas mais premiados do Brasil. Recebeu, entre outros, o Prêmio Esso de Jornalismo, em 2008, pela reportagem sobre o patrimônio dos dirigentes da Igreja Universal do Reino de Deus. Em janeiro de 2016, publicou a reportagem “TVs da Amazônia Legal-Realidade que o Brasil Desconhece”. Aos 62 anos, casada, tem três filhos e dois netos. Alimenta sua alma de repórter com incursões pelo interior para fotografar e coletar histórias da gente brasileira. Faz bordados lindos e um pão de queijo….

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