Maternidade ainda que tardia

Realizada profissionalmente e feliz na vida pessoal, ela nunca tinha pensado em ter filhos. Mas eis que Lucila se surpreende quando a vontade de ser mãe bate à porta e ela descobre que pode ser tarde demais. Tarde? Que nada! A vida a presenteou com João, hoje com nove anos.

Lucila no seu aniversário de 50 anos com Chico e João, com 1 ano e oito meses / Fotos de arquivo pessoal

Lucila no seu aniversário de 50 anos com Chico e João, com 1 ano e oito meses / Fotos de arquivo pessoal

A maternidade nunca me encantou. Nos meus sonhos de juventude, sempre couberam melhor planos de uma vida independente e livre, com muitas viagens e realização profissional – nessa ordem. Não que a ideia de ser mãe me desagradasse. Ela simplesmente não fazia parte de mim. E a vida foi acontecendo, mais ou menos como eu imaginara. Trabalhei duro, fiz uma carreira bacana como jornalista, tive um casamento feliz e divertido, sem crianças, curti meus sobrinhos e os filhos dos amigos. E viajei muito.

Tudo se encaminhava para continuar assim. Até que, pouco depois do aniversário de 40 anos, o casamento acabou. Quando a dor da separação passou, e comecei a achar graça na vida de solteira, conheci o Chico, meu atual marido. Depois de um breve e intenso namoro, fomos morar juntos e, pela primeira vez na vida, pensei em ter um filho. Embora conhecesse os termos que definem a mulher que não presta atenção à marcha do relógio biológico, nem me passava pela cabeça que eles se aplicassem a mim. “Gravidez tardia” é antipático, já te tacha de atrasada. Mas pior é primípara idosa. Como assim?

A ficha caiu quando a especialista recomendada por uma amiga me recebeu em seu consultório repleto de fotos de bebês e, depois de um longo questionário, me disse, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, que, na minha idade, eu só engravidaria usando óvulos de doadora. Quase caí da cadeira. Ela se espantou com o meu espanto. E descobri que só eu não sabia que a maioria daquelas atrizes que exibiam suas barrigas nas capas das revistas usou óvulo de doadora. Não consegui ouvir mais nada. Só me lembro de descer no elevador lotado com as lágrimas escorrendo por baixo dos óculos escuros. Não era um choro de tristeza, mas de susto. Estava apaixonada, recém-casada, recém-contratada num ótimo emprego. O fato de ter 44 anos era apenas um detalhe. Como assim, velha?

Decidi não enfrentar os tratamentos de fertilização. E por um tempo arquivei o projeto filho. Mas, como diz Paulinho da Viola, o desejo não tem jeito. O meu ficou hibernando, mas logo despertou, e veio me tentar com a ideia de adotar uma criança para completar a família que começara a construir com Chico, que além de muitas outras qualidades, já tinha me mostrado ser um ótimo pai de seus dois filhos do primeiro casamento. O convite a essa nova paternidade aconteceu numa viagem, claro. E das mais especiais. Foi em Granada, de frente para o Alhambra, que tomei coragem para retomar o assunto filho. Entre a consulta à especialista e a chegada do João, passaram-se quatro anos. Em 2007, dois anos depois de darmos entrada no pedido de habilitação na Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, adotamos João, que tinha então apenas dois meses.

Hoje, tenho 57 anos e um filho de nove. Chico e eu estamos acostumados a ser tratados como avós do João. As pessoas ficam muito sem graça quando informamos que somos pais dele. Não vejo motivo para isso. Nós, que poderíamos, de fato, ser avós, somos mãe e pai fora da idade convencional para esse papel, no qual me sinto perfeitamente à vontade. Tenho uma boa saúde, o que certamente ajuda a não sucumbir diante do ritmo frenético que a maternidade exige, incluindo festas de pijama e outras aventuras. Mas nem tento ter o pique juvenil das mães que têm seus filhos “na hora certa”. Afinal, cada escolha tem seu preço.

A maternidade “tardia” implica menos, ou nenhum, apoio logístico familiar. No meu caso, isso simplesmente não existiu. Mas como já estava totalmente estabilizada profissionalmente, pude montar ao final da licença-maternidade o que batizei de “ministério” — uma estrutura doméstica capaz de dar suporte às minhas longas jornadas de trabalho e madrugadas na revista “Veja”. Algo impensável para minhas amigas que foram jovens mães.

Elas tiveram que se esforçar muito mais do que eu para construir suas carreiras em paralelo ao crescimento de seus filhos. Tiveram que abrir mão de muitas viagens, e sofreram mais do que eu com os horários loucos dos bebês, porque a necessidade de sono dos jovens é maior.

Hoje, têm filhos adultos, que dependem cada vez menos delas, podem dormir até tarde e pensar em aproveitar a longa vida que têm pela frente. Eu aproveitei muito a juventude sem filhos, virei noites trabalhando e farreando, e no dia seguinte podia dormir.

Agora tenho que abrir mão de sair, e não posso nem pensar numa transição tranquila para a velhice. O que me espera é a continuidade dessa vida trepidante de toda mãe. O que, aliás, não é nenhum problema. Ao contrário, a maternidade me mostrou um outro sentido de estar no mundo, além de me trazer uma alegria imensa que contribuiu para uma entrada tranquila na menopausa. Entre fraldas e mamadeiras, escolha de creche, escola, novos amigos — alguns dos quais poderiam ser meus filhos –, os fogachos e outros sintomas ficaram em segundo.

Lucila e João em Buenos Aires na exposição de 50 anos da personagem Mafalda

Lucila e João em Buenos Aires na exposição de 50 anos da personagem Mafalda

João todos os dias me surpreende com algum comentário, me faz rir de alguma coisa, me instiga com perguntas inesperadas. Claro que me tira do sério também, com muita frequência, porque faz parte da função filho desafiar seus pais e mães na hora de fazer o dever de casa, tomar banho, baixar o volume da TV, largar o maldito videogame. E isso é apenas a administração do cotidiano, a face visível da imensa responsabilidade de educar uma criança, com o mar de dúvidas que isso traz, não importa se a maternidade acontece aos 20 ou aos 50.

Entre essas dúvidas, uma me assalta com alguma frequência, e resulta de uma conta simples. Quando João tiver 20 anos, eu terei quase 70. Será que vou dar conta? Mas depois deixo pra lá. Não penso mesmo em parar de trabalhar, e a maternidade “tardia” me ensinou que não se deve levar o relógio biológico excessivamente a sério. João me confirma que é o melhor a fazer. Um sábado desses, disse a ele que não poderíamos ir ao clube porque eu tinha que pintar o cabelo. Resposta, na lata: “Vai sim, porque se ficar de cabelo branco aí mesmo é que vão achar que você é minha avó”.

Que venham outros projetos “tardios”.

Lucila Soares, especial para Mulheres50mais

Lucila Soares, especial para Mulheres50mais

Lucila Soares é carioca, nascida em 1958. Antes de escolher o jornalismo, profissão que exerce há 30 anos, quis ser arquiteta. Chegou a cursar Arquitetura por três anos, mas descobriu gostar muito mais da máquina de escrever do que da prancheta. Começou como jornalista no Indicador Rural e, mais tarde, trabalhou em O Globo (na editoria de Economia e como correspondente em Buenos Aires), Jornal do Brasil, Extra (fez parte da equipe que fundou o jornal) e Veja. Foi assessora-chefe da Firjan e atualmente é coordenadora de imprensa do BNDES. Em 2007, adotou João. E descobriu que existem questões muito mais desafiadoras (e prazerosas) do que aquelas com que sempre lidou nas redações.

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