Histórias e reflexões de uma cacique indígena

Se as indígenas não se submetem à ditadura do calendário, como a passagem dos 50 anos é percebida por elas? Sentirão as mudanças hormonais? Terão, como muitas de nós, ímpeto de mudar o curso de suas vidas depois da menopausa?

Com essas perguntas em mente, deixei Manaus na manhã de 27 de junho, e tomei a estrada rumo à aldeia Sahu-Apé, a uma hora de viagem da capital do Amazonas. O fotógrafo Arlesson Sicsú foi meu companheiro e guia na aventura.

Sahu-Apé é uma pequena aldeia indígena, na margem do Rio Ariaú, um afluente do Rio Negro que banha a cidade de Manaus.

Cacique Bacu, da aldeia Sahu-Apé, no Amazonas: uma das cinco caciques mulheres existentes no Brasil. Foto: Arlesson Sicsú

Cacique Bacu, da aldeia Sahu-Apé, no Amazonas: uma das cinco caciques mulheres existentes no Brasil. Foto: Arlesson Sicsú

À frente da aldeia está uma mulher de pequena estatura, mas determinada a preservar a cultura de sua gente. Seu nome de registro é Zelinda da Silva Freitas, mas é conhecida pelo nome indígena: Bacu.

Ela é uma das cinco caciques mulheres existentes no Brasil. Os líderes dos Sateré são chamados tuxauas, mas ela própria se apresentou como cacique, para facilitar a identificação de sua autoridade. A aldeia é composta por 14 famílias de descendentes diretos de Bacu.

Aos 62 anos, tem seis filhos, 12 netos e dois bisnetos. Em breve nascerão mais três bisnetos.

Por alguns anos, a aldeia esteve na rota do turismo internacional, por causa do famoso hotel de selva Ariaú Amazon Tower que, em seus áureos tempos, hospedou celebridades como Bill Gates, Jimmy Carter e o rei Juan Carlos. O hotel fechou as portas no primeiro semestre de 2016, afundado em dívidas.

Os Sateré-Mawé são originários da região do Médio Amazonas, próximo da divisa com o Estado do Pará. Eles se organizam por clãs, e somam uma população aproximada de 14 mil indígenas, dos quais cerca de 600 moram em Manaus e imediações.

Quando cheguei, pouco antes das 9h, encontrei a aldeia limpa e organizada. Os artesanatos produzidos pelas mulheres estavam expostos sobre jiraus.

Bacu me esperava deitada em sua rede, cercada pelos filhos. Usava, como as demais mulheres, vestido de pano de saco, com desenhos coloridos, e tinha pinturas geométricas no rosto e nos braços, feitas com tinta preta extraída do jenipapo.

“Tenho para mim que não sou bonita nem feia. Mas sou feliz como sou” — cacique Bacu, da tribo Saterê-Mawé

Além das funções de cacique, Bacu é professora, contratada pela prefeitura de Iranduba para ensinar às crianças da aldeia a língua e a cultura Sateré. É também pajé e parteira.

Nossa conversa durou pouco mais de uma hora. Bacu fala o português fluentemente, mas se comunica com os filhos e netos na língua nativa.

Eis como ela resumiu sua história e observações sobre a vida:

Infância na mata

“Nasci na aldeia Ponta Alegre, muito longe daqui. Meu avô escolheu o nome Zelinda, e fui batizada por missionárias. Meu pai era da tribo Gavião e minha mãe, Sateré. Só aprendi a língua da minha mãe. Meus pais eram analfabetos.

Aos 12 anos, me apaixonei pelo meu marido, Benedito Souza. Minha mãe achava ele preguiçoso e não me deixou casar. Me mandou para Manaus trabalhar como doméstica em casa de família, e para estudar. Depois de um ano, voltei para a minha aldeia e me casei. Ele se tornou um bom pai, muito trabalhador.

Viemos para cá em 1993. Fomos contratados pelos donos do hotel Ariaú para construir uma maloca grande, de 400 metros quadrados. Viemos eu, meu marido, e dois filhos com as famílias deles. Ficamos morando na maloca, fazendo artesanato, plantando roça e atendendo aos turistas. Depois de um tempo, não deu mais certo e fizemos esta aldeia, numa terra cedida pela prefeitura. No começo a terra era grande, mas foram diminuindo a reserva e o que sobrou não dá para plantar quase nada.

Meu filho mais velho foi o primeiro tuxaua da aldeia. Um dia, durante as festas do Boi Bumbá, ele saiu para buscar o rancho (cesta básica) para nós. Ficou três dias sumido, sem dar noticias, e nós sem nada para comer, a não ser o peixe do rio. O hotel Ariaú só liberava o rancho para o tuxaua. Quando ele voltou, viu que não podia ter abandonado o povo dele, e passou o comando para mim. Eu tinha 40 anos quando isso aconteceu.

thumb__MG_0502_1024Beleza e felicidade

“Tenho para mim que não sou bonita nem feia. Mas sou feliz como sou. Quando eu era jovem, tudo parecia mais difícil e eu não me achava bonita. Minha vida era triste, tumultuada e apaixonada, porque minha mãe não queria meu casamento. Hoje me sinto bem.

Depois que eu me casei, cuidei da minha casa. Depois que montei essa aldeia, cuidei da aldeia. Faço artesanato, recebo as pessoas, vejo meus filhos, meus netos e meus bisnetos. Acordo, tomo meu mingau e cuido das minhas obrigações. Não tem como não ser feliz assim”.

Envelhecimento e paz interior

“A menstruação era uma tristeza para mim, porque eu não podia ficar andando livremente. Hoje eu ando e trabalho todos os dias. A vida depois dos 50 anos mudou para melhor. Muito melhor.

Não me preocupo muito. Senão, vou ter raiva e adoecer. Minha receita é não pensar em problemas, não buscar o consumismo, fugir da poluição. Se eu viver na cidade, vou precisar de carro, de casa boa, e vou enfrentar engarrafamento. Aqui na aldeia, não há estresse e não falta alimento. Temos farinha, peixe, açaí e, nesta época do ano, temos o buriti.

Na aldeia onde nasci tinha uma praia muito bonita. Quando a gente estava chateado, tomava banho e esfriava a cabeça. Ninguém pensava em quando ia chegar o Natal. Hoje os meninos da aldeia já querem presente no Natal.

Rituais

Dizem que o índio é preguiçoso. Não concordo. Se fosse verdade, morríamos de fome. O que acontece é que tomam a terra da gente e não podemos mais plantar.

Criamos os meninos e as meninas para serem trabalhadores. O menino passa pelo ritual da “tucandeira” para se tornar um guerreiro forte e um bom caçador. Ele enfia a mão em uma luva de palha cheia de formigas gigantes (tucandeiras) e dança durante o sacrifício. A dor das picadas dura 24 horas. Para ser considerado adulto, ele tem de enfiar a mão na luva 20 vezes.

As meninas passam pelo ritual da moça nova. Elas ficam trancadas durante a primeira menstruação e quando saem arranham o corpo com dente de paca, e passam gengibre e um cipó que queima nas feridas para não terem preguiça e ficarem saudáveis e espertas. Algumas meninas pedem para fazer o ritual da tucandeira também.

Tenho dois genros que não são índios. Mas, eles se tornaram integrantes da aldeia depois de passar 20 vezes pelo ritual da tucandeira. Só então puderam se casar com minhas filhas.


Agradecimentos

Esta reportagem não teria sido possível sem a colaboração generosa de Clayton Pascarelli, jornalista, apresentador da Rede Amazônica e um dos diretores da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), e do fotógrafo Alersson Sicsú. Aos dois, nossos agradecimentos.

Elvira Lobato

Elvira Lobato

Mineira, de uma família de 17 irmãos, foi criada na zona rural de Pitangui, na região do Cerrado. Aos 19 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde participou da resistência à ditadura e construiu sua carreira de repórter. Formada pela UFRJ, atuou na imprensa escrita por 39 anos, 27 deles na “Folha de S. Paulo”, onde fez parte do núcleo de repórteres especiais de 1992 a 2011, quando se aposentou do jornalismo diário para se dedicar a projetos pessoais. É autora do livro “Instinto de Repórter”, sobre seus métodos de investigação jornalística. Está no ranking de jornalistas mais premiados do Brasil. Recebeu, entre outros, o Prêmio Esso de Jornalismo, em 2008, pela reportagem sobre o patrimônio dos dirigentes da Igreja Universal do Reino de Deus. Em janeiro de 2016, publicou a reportagem “TVs da Amazônia Legal-Realidade que o Brasil Desconhece”. Aos 62 anos, casada, tem três filhos e dois netos. Alimenta sua alma de repórter com incursões pelo interior para fotografar e coletar histórias da gente brasileira. Faz bordados lindos e um pão de queijo….

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