Filhos, nunca quis tê-los

Sei que os versos de Vinícus de Moraes contrapõem com viés lúdico o caráter definitivo do meu título-manifesto: …“mas se não os temos/ como sabê-los?…’ Apesar de sempre ter apreciado a leveza do poeta e de reconhecer no seu ‘Poema Enjoadinho’ (*) bons argumentos para convencer quem estiver adiando o momento de aventurar-se na experiência da maternidade/paternidade, minha covicção contrária sempre foi visceral, ainda que, durante muito tempo, eu não tenha conseguido articulá-la.

E foi essa dificuldade em explicar, racionalmente, porque nunca quis (e continuo não querendo) ser mãe que me confundiu. A primeira vez aconteceu quando, aos 20 e alguns anos, todos à minha volta perguntavam quando chegaria o rebento (!). Afinal, eu já estava casada (bem casada) há quatro anos, com um marido disposto a encarar a paternidade, contando com o suporte de potenciais avós prontos e ávidos para assumir seus papéis, e com a minha vida profissional promissoramente encaminhada …

“Então”, – todos perguntavam – “O que está faltando?”

“Nada”, eu respondia.

“Se nada falta, então, quando?” – Todos insistiam.

“Nunca!” Eu respondia direta e secamente, porém, sem saber justificar a resposta que disparava da minha boca, antes que eu pudesse parar um segundo para pensar em como amenizar o impacto daquela afirmação que só a mim não chocava. Era uma certeza peremptória, quase fundamentalista.

Certeza da qual comecei a duvidar, quando todos ao redor passaram a dizer que havia algo errado comigo, ao mesmo tempo que tentavam explicar:

“Você está com medo das mudanças que um filho traz…”

“….?”

“Você quer fugir do processo de amadurecimento. Ter filhos faz parte dele”.

“!!!!…”

“Você está negando sua própria natureza. Afinal, a maternidade é vocação feminina!”

“!?!?!?!?!…”

“As pessoas se casam para constituir família, como você pode cogitar não dar continuidade ao que foi começado antes de você”?

“????????????!!!!!!!!!!!!!!”.

Por conta das dúvidas que tantos questionamentos-explanatórios suscitavam, resolvi averiguar minha certeza quase talibã. Era o mínimo que eu podia fazer. E, de repente, quem sabe…, eu não estaria negando alguma coisa da qual me arrependeria, quando os ponteiros do relógio biológico vaticinassem: não há mais tempo!?

Maternidade é opção, não é destino.

Ao mesmo tempo, olhando além do próprio umbigo, reconheci: marido e família estendida de então mereciam uma resposta mais clara do que o ‘Nunca. Por quê? Não sei. Só sei que é assim: NUNCA!’ , que naquele momento eu oferecia como resposta para suas questões de procriação, de continuidade.

Escolhi o caminho da psicanálise. E o escolhi um pouco por acaso; como poderia ter optado por qualquer outro que, naquele momento, me acolhesse sem julgamentos, sem diagnósticos. A única exigência era que, nesse caminho, os transeuntes me abraçassem, me escutassem, possibilitando que eu ouvisse a minha própria voz. A voz gutural que vinha da alma – ou seria do útero? Ou de ambos? – e que, embora eu não soubesse traduzir, precisava articular.

A voz que, muitas vezes, era ouvida na forma tati-bi-tati e que, outras tantas, soava delirante. A voz que não se expressava em prosa ou em verso, mas que me virava do avesso para reafirmar, em silêncio, aquela/essa que era/sou eu: uma mulher, sim; do gênero feminino, sim; afetuosa, sim; sensível, sim; capaz de estabelecer laços, sim; teimosa, sim; implicante, sim; impaciente, sim; e, humildemente, determinada a não ter filhos. Humilde e determinada, para reconhecer que me faltam coragem e generosidade para abraçar algo tão definitivo – definitivo como a morte.

Sei que minha franqueza beira a fronteira do obsceno e que a comparação da maternidade com o destino que todos temos em comum é mórbida. Me perdoem. De verdade, me perdoem, mas não encontro outra imagem para simbolizar algo tão definitivo. E é justamente a crueza do fato de que filhos são nossos para sempre – ainda que os reneguemos, abandonemos e doemos; mesmo que não sobrevivamos a eles – que me fez/me faz escolher árvores e livros como legado.

Não foi fácil chegar, em paz, até aqui.

Foram mais de 20 anos no divã; precisamente dos 23 aos 45 anos. Tempo bastante não só para confirmar o que eu já sabia lá no começo, mas do que cheguei a duvidar: maternidade é opção, não é destino. Tempo suficiente para rearticular as mesmas respostas para as mesmas perguntas formuladas de formas diversas, por distintos interlocutores, em diferentes etapas da minha vida. Tempo necessário para amadurecer e apaziguar qualquer sobressalto dessa natureza, antes de completar 50 anos. Tempo, tempo, tempo, tempo… já refletiu e versejou mestre Caetano (**). Tempo necessário para que eu escutasse todas as nuances da minha voz. Dessa voz que embala, acalanta, afaga e consola. Dessa voz que desabafa, desafia, esbraveja e desacata. Dessa voz que é minha e que apenas fala; diz o que sente, sussurra e cala. Porque é o silêncio que tudo ouve e é no silêncio que a voz entoa cantigas de ninar.

…………

(*) Poema Enjoadinho

 Filhos… Filhos?

Melhor não tê-los!

Mas se não os temos

Como sabê-lo?

Se não os temos

Que de consulta

Quanto silêncio

Como os queremos!

Banho de mar

Diz que é um porrete…

Cônjuge voa

Transpõe o espaço

Engole água

Fica salgada

Se iodifica

Depois, que boa

Que morenaço

Que a esposa fica!

Resultado: filho.

E então começa

A aporrinhação:

Cocô está branco

Cocô está preto

Bebe amoníaco

Comeu botão.

Filhos? Filhos

Melhor não tê-los

Noites de insomnia

Cãs prematuras

Prantos convulses

Meu Deus, salvai-o!

Filhos são o demo

Melhor não tê-los…

Mas se não os temos

Como sabê-los?

Como saber

Que macieza

Nos seus cabelos

Que cheiro morno

Na sua carne

Que gosto doce

Na sua boca!

Chupam gilete

Bebem xampu

Ateiam fogo

No quarteirão

Porém, que coisa

Que coisa louca

Que coisa linda

Que os filhos são!

(**) Oração ao tempo

Ouça a música: http://bit.ly/2d2EpX0

Vera Dias, especial para Mulheres50mais

Vera Dias, especial para Mulheres50mais

Vera Dias tem 59 anos, é jornalista, com carreira iniciada em veículos de comunicação e depois dedicada à comunicação corporativa em grandes empresas. Hoje divide seu tempo entre as atividades de consultora independente e de blogueira. É autora do blog 2xTrinta (veradiasduasvezestrinta.blogspot.com), que aborda temas relacionados à transição para os 60 anos, pela perspectiva de quem a experimenta. Vera não tem filhos, mas se considera mãe de Onassis, um gato de quatro anos, e de Péricles, um jabuti de 70, “que veio como dote do casamento com Luc Bueno, há 15 anos”. Além de escrever e de conversar, gosta de ler, ouvir música, caminhar e apreciar um bom vinho, principalmente em tardes chuvosas.

3 Comments

  • Cristina Chacel

    Está linda a Verinha! E o tema que ela corajosamente enfrenta é recorrente entre tantas mulheres! Conheço várias que escolheram não ter filhos. Escolheram mesmo. E são felizes com suas escolhas. A maternidade não deve ser um grilhão cultural. Este é um debate que interessa muito às moças mais jovens, que se encontram neste momento de escolha ou expostas a este tipo de pressão. É possível ser mulher e não ser mãe, por escolha. De liberdade. É disso que que se trata. Beijo, Verinha! Parabéns!

    11 de outubro de 2016 em 7:03 pm
  • Débora Garcia

    Amei o tema abordado.
    É deste jeito mesmo, muita pressão.
    Perguntam porque não quero casar, se não quero ter filhos…. Mas é opção mesmo! Excelente ver seu texto, serve para guiar as meninas mais novas que tem o mesmo pensamento.

    23 de fevereiro de 2017 em 1:21 pm
  • Marcella

    Ola! Muito bom ler essas informações de uma mulher já experiente e madura! Digo isso, pois percebe-se que foi uma escolha real sua, e não teve influência de uma ”onda” childfree.. Eu penso sempre sobre a ”filhos”, e sempre me repete a velhice.. Como sobreviver a ela sem alguém para cuidade de nós, como os filhos?

    30 de agosto de 2017 em 2:35 pm

Comments are closed here.