Estrangeira na própria cidade

Escritora decide explorar as ciclovias durante as Olimpíadas. Redescobre o Rio de Janeiro e reconhece que o clima olímpico converge gregos e baianos e dá um certo alívio ao mundo nosso de todos os dias.

Você nem precisa ter uma ‘Sundown’ branca e lilás, ano indefinido – com marcha, pensando o quê? – sem nunca ter suspeitado que esta marca não era só de protetor solar. Basta que ela esteja em forma – freios funcionando, pedais pedalando – e que você tenha disposição de fazer um programa diferente. Do tipo ser uma forasteira-ciclista na própria cidade. Foi o que me ocorreu depois de ver tantas queixas de nativos inconformados com gastos monumentais, imorais, para um grande evento esportivo.

Na verdade, a gente ouve lamúrias desde que se entende por carioca, brasileira (e lá se vão mais de 50 anos), e mais ainda em tempo de Olimpíadas. Na nossa terra. Ah, que alegria, ah, que severidade. Haja piedade dessa gente eternamente insatisfeita, Cristo, nosso Redentor.

Na Enseada de Botafogo, a sinalização bilíngue alerta para a paisagem. Fotos: Cátia Moraes

Na Enseada de Botafogo, a sinalização bilíngue alerta para a paisagem. Fotos: Cátia Moraes

Voltando ao plano inicial: é preciso força nas pernas. Venho me exercitando na academia, na quadra de tênis, com um prazer juvenil. Cinquenta? Quem? Quando foi isso? Bem, vou partir para a aventura de pedalar de Ipanema até o coração da cidade, revitalizado, lá longe, no Centro. Ainda não conheço o Porto Maravilha, nem a nova Praça Mauá, nem o Museu do Amanhã. A perspectiva é mais que animadora. Algo como me sentir uma… amadora. De alma.

O dia de sol ameno me chama. Coloco uma roupa esportiva, poucos pertences na mochila, enfio um boné para não ser reconhecida – afinal, serei estrangeira – e parto. Às 14h05, saio de Ipanema, céu azul, vento no rosto e, em poucos minutos chego à primeira muvuca olímpica, às margens da Lagoa. Uma Suíça carioca.

Sigo pedalando, olhando, tentando entender tanto barulho, chegar a uma conclusão, qualquer que seja, mas meu olhar é assaltado, às raias do espelho d’água já pronto para a competição.

Saio da Lagoa, me enfio no trânsito, como fazia na infância sem tantos carros do Leblon. Mais que bom, ótimo, descubro a ciclovia do Humaitá, que engata na de Botafogo. Vou desviando dos buracos, muitos, eles podem até provocar uma queda, mas não vão me abalar, e, quando dou por mim, alcanço a enseada de Botafogo. Em 40 minutos. Uma passagem subterrânea e… a praia! Thank’s, God.

Pela primeira vez na vida, pedalo diante do Pão de Açúcar, da enseada, da Urca, tenho ímpeto de parar, me ajoelhar. Não chego a tanto, mas obedeço à ordem bilíngue escrita no chão da ciclovia – “pare e aproveite a paisagem” -, não sem antes verificar se é seguro tirar o celular da mochila. Técnicas de guerrilha de cariocas, assim como a Sundown de segunda mão, para não atrair olhares cobiçosos. E uma tranquilidade que não teria antes dos… 50. Olho vivo, pero, sin perder la ternura.

Quarenta e cinco minutos de pedalada, esturricada de sede. A barraquinha de coco no início do Aterro do Flamengo não é miragem, a água gelada e doce desce redonda para mim e para Pierrot que, entre um gole e outro dos donos, late avidamente para as águas nada limpas da baía. Mistério.

Aterro do Flamengo / Foto: Cátia Moraes

Aterro do Flamengo / Foto: Cátia Moraes

Subo na bicicleta e sigo pelo Aterro, deliciada com as curvas do percurso que não conhecia como ciclista. Não sinto um pingo de cansaço, sequer estou suada como normalmente. Há policiamento, mas nem tanto. Não me assusto. Oxigenada pelo exercício, a paisagem, os recantos que forçam paradas obrigatórias, já não sou aquela que saiu para ‘investigar’. Nem sombra dela.

Há alguém levada pelo vento, por um encantamento que deixa as pernas e os neurônios em sintonia com algo que vai se anunciando como bem-estar, prazer, delicidade, se me permitem o neologismo. Em absoluta conformidade com o que vejo, inspiro, respiro. Exalo. E me rendo. Começo a postar mais impressões e fotos na rede social, se o que pretendo não é ‘amostramento’, é um arrebatamento que preciso repartir antes que me rasgue o peito.

Pierrot, se rende às águas de coco e da Baía de Guanabara

Pierrot, se rende às águas de coco e da Baía de Guanabara

Chego ao Santos Dumont, engarrafado, filas de motoristas impacientes, mal sabem a ternura que trago desde Ipanema, Lagoa, Humaitá, Botafogo, Flamengo, e me encaminho para a ciclovia que serpenteia os fundos do aeroporto. E isso existe? Exulto ao imaginar que posso passar ao largo da pista vizinha ao mar, por pouco não tomo um estabaco ao descer o meio-fio com ansiedade e descobrir uma cabine da Marinha. Converso com os guardas. Caminho fechado durante a Olimpíada. Sempre ela.

Sem problema. Preciso fotografar, compartir os fundos do aeroporto mais bonito do mundo – tanto o aeroporto como os fundos, voltados para o Pão de Açúcar, o oceano, o mar. Como não amar? Verbo transitivo direto, é só o que consigo pensar enquanto olho para os lados, antes de tirar o celular da mochila. É preciso estar atenta e forte. A guerrilha não dá trégua, companheiros.

Foi mal, companheira, espero que me entenda. Você não tem culpa. Nunca teve. Esse tiroteio não te pertence. Preciso me concentrar no objetivo inicial: chegar ao Centro revitalizado. Foi isso a que me propus, lembra? A nova Praça XV, a nova Praça Mauá, se é que você vai deixar. Na boa, você sabota. Atordoa. Estou completamente seduzida. Redimida de pensamentos humanos.

Flutuo na Sundown como um coquetel ‘pedalante’ de serotonina, dopamina, noradrenalina. É preciso seguir, minha bela. A essa altura desço a ciclovia construída entre o Santos Dumont e a Praça XV, já não respondo por mim quando passo pela Casa da Colômbia, olímpica, em festa, bem na frente do Museu Histórico Nacional, iluminado pelo fim de tarde. Penso num gole de tequila com los compañeros. A liberdade de ir e vir e, eventualmente, tomar um gole, é uma grande conquista. Que costuma ficar melhor com o passar dos anos.

Mas você me chama. Estou em chamas, calorosas, brandas, quando chego à mítica, à minha Praça XV da infância, em que pegávamos a barca para Niterói, a de passageiros e a de carros, não sei qual das duas era mais mágica, tinha mais esconderijos e aventuras. Esta praça, descubro agora, perdura e renasce na área reconstruída em suas origens. E, como se não bastasse, olímpica. Vocês me entendem? Sério, me entendem?

O Chafariz do Mestre Valentim em contraste com prédio espelhado na Praça XV

O Chafariz do Mestre Valentim em contraste com prédio espelhado na Praça XV

Passa das quatro da tarde quando avisto o que recebe o nome de Boulevard 2016. Leva de uma praça à outra, reunindo Rio antigo e Rio moderno, a cidade de ontem e hoje. Estou tentando chegar no Amanhã, mas é difícil me desvencilhar do aqui e agora. Há sempre uma surpresa para ver, fotografar. Louvar. Muita gente faz o mesmo, caminha, descobre e confraterniza o novo centro, a festa, a cidade.

Sei, sabemos, que o perigo mora ao lado. Ao largo. Em qualquer lugar, a qualquer hora. A tempo de se deslumbrar com a vista do Amanhã atravessado pelo sol poente, chega a doer de bonita. Sobreviventes. Seres viventes. Desde sempre. Uma cidade que oferece tamanha beleza merece ser feliz. E, a essa altura da vida, como cantava Odair José (o compositor, lembram dele?), “felicidade não existe, o que existe são momentos felizes”.

Por tudo o que vi e senti, hoje, sou mais que sobrevivente. Se não estou no pódio, devo estar perto. Queiram ou não, uma Olimpíada converge. Congrega. Dá um certo alívio ao mundo. Sim, jovens, alívios são enganosos, involuntários. E necessários. Como neste cenário, reunindo gregos e baianos, que seguem ao ritmo do batidão do som, ou seria do meu coração? Nada como ser estrangeira na própria cidade.

Cátia Moraes, especial para Mulheres50mais

Cátia Moraes, especial para Mulheres50mais

Cátia Moraes é jornalista e escritora, autora de quatro livros-reportagem, professora-oficinista sobre a escrita, devotada à arte de escrever e apaixonada, particularmente, pelo gênero que capta o que há de mais espontâneo no ser humano, em seu cotidiano: a crônica.

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