De Macondo a Nova Iguaçu, a força de um matriarcado inclusivo

Laudelina, Neuza, Alaine e Luana. Quatro mulheres de gerações diferentes de uma mesma família, que uma delas, Alaine, a nossa entrevistada, classifica como um matriarcado. Nascida no Complexo do Alemão e vivendo, hoje, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Alaine Brum Pinheiro dos Santos, de 49 anos, já sofreu maus bocados. Do bullying racista por ser filha de pai negro ao esforço para incluir os próprios filhos homossexuais na sociedade, passando por um aterrorizante episódio de violência sexual, ela deu a volta por cima e garante que chega aos 50 “feliz e realizada”. Por isso, é com Úrsula Iguarán, surgida no clássico Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, uma das mais importantes e representativas matriarcas da literatura latina, que ela, junto às antecessoras Laudelina e Neuza e à sucessora Luana, pode ser comparada.

Alaine, como a icônica personagem criada pelo colombiano vencedor do Nobel de Literatura, sempre esteve, de algum modo, à frente das decisões familiares ou sendo fortemente afetada por elas. Segunda filha de um relacionamento interracial, o pai era negro e a mãe, branca, ela lembra que, com os três irmãos, teve que lidar muito cedo com o preconceito. “Sofria na escola por ser a filha do negro. Não importava para as outras crianças se minha mãe era branca”, conta. Dessa forma, a Úrsula tupiniquim começa a desenhar, neste encontro, seu way of life, pontuando os episódios que a tornaram mais tolerante aos diferentes pontos de vista das pessoas: “O preconceito que sofri me levou a ter esclarecimento sobre a decisão do outro”.

Tolerância que também permeia a relação com os três filhos, Luana, 30 anos, José, 27, e Lucas, 20. Mas, perto do que Alaine teve – e ainda tem – que ouvir por conta dos caminhos que a vida reservou para sua prole, a discriminação dos coleguinhas de turma na infância não passa de café pequeno, pois o racismo não é o único percalço dessa história que se desenrola na Macondo (cidade fictícia de Cem Anos de Solidão) fluminense, o bairro de Ponto Chic. Uma mãe solteira, um rapaz que se relaciona com outro rapaz e um menino que não se encaixa nas definições de gênero tradicionais vão chacoalhar o cenário. Como se isso já não fosse ousadia demais para qualquer família, mesmo nos dias atuais, imagina para uma que mora em Nova Iguaçu.

Cidade que, em 2010, estava, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), na 1.514ª posição do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do país – o Brasil tem 5.565 municípios -, Nova Iguaçu é, além de um lugar com muita pobreza, uma das regiões mais violentas do Estado do Rio de Janeiro. O Instituto de Segurança Pública (ISP) aponta que, entre janeiro e setembro de 2016, a 58ª Delegacia Policial (DP), no bairro iguaçuano da Posse, liderou, com 150 casos, o ranking do registro estadual de homicídios dolosos. Apesar das mulheres serem 52,06% dos quase 797 mil moradores (dados do último Censo do IBGE), em Nova Iguaçu, ainda vale a máxima machista que define o homem como o inquestionável-provedor-chefe-da-família.

Diversidade e inclusão

Alaine e os filhos: “Tenho medo, mas não criei meus filhos para ficarem presos em casa”. Foto: Angelina Nunes

Em um ambiente inóspito para se levar adiante uma visão de mundo como a de Alaine, ela ainda precisa, diariamente, lidar com o tabu dentro e fora de casa. Primeiro, o estupro. Depois, surgem a adolescência dos filhos e as mudanças que foram sendo percebidas neles. Com o resultado disso, ela convive em seu cotidiano. “Sou uma mãe-loba. Não encostem nos meus filhos e não me venham com essa de ‘o viadinho’, ‘a mulher separada’, coisas assim. Quando eu estou perto e eles sofrem esse tipo de preconceito, viro bicho e me meto”, comenta. A “mulher separada” é a filha Luana, produtora cultural e assistente de direção, que deu à Alaine seu único neto Ícaro, de seis anos, e que está grávida novamente.

Já com os filhos José e Lucas, uma mesma questão, a diversidade sexual, com tons particulares. José, publicitário e um dos responsáveis pelo Canal Plá (http://www.canalpla.com), projeto audiovisual que divulga ações de coletivos da Região Metropolitana do Rio, é homossexual e tem, hoje, um relacionamento com outro homem. “Não precisei de muita coisa para descobrir que o José era gay. Ele sempre foi uma praga, um menino malcriado e cheio de assunto. Na adolescência, ele emudeceu. Vi que algo estava acontecendo”, destaca. Alaine acredita que a grande confessora de José foi a irmã Luana. “Ele se abria mais com ela. Comigo e com o pai, foi uma conversa que não durou dez minutos. Afinal de contas, eu já sabia”, resume.

Sete anos mais novo que José, Lucas trouxe tintas novas para esse painel. Fotógrafo e participante do coletivo Baphos Periféricos, ele se transformou há cerca de um ano e meio e, hoje, chama-se Quitta. Apesar de preferir usar roupas femininas, Quitta, que já teve um namorado, não se assume como mulher e, sim, como trans não-binária, ou seja, não se identifica com qualquer um dos dois gêneros tradicionais (masculino x feminino). “Quitta é a mais parecida comigo. Ela já tinha um jeito diferente de ser desde os oito, nove anos. Sempre muito solícita, um amor, muito carinhosa. Parecia que ela entendia, mesmo sendo criança, as barras que eu estava passando”, descreve Alaine.

Até que todas as cores da diversidade chegassem a impregnar seus filhos, muita coisa aconteceu. “Uma vez, uma tia minha quis zombar da Quitta e falou algo desagradável para a minha mãe e a minha avó. Foi quando a vó Laudelina, bisa deles, que tem, hoje, 89 anos, cortou o assunto e defendeu minha filha. Ela disse para a minha tia: ‘Não fale dos netos da Neuza porque eles são um amor. Me beijam e me sinto muito acarinhada, coisa que seus filhos machos não fazem’”, ri Alaine ao contar. Se, na família, atitudes assim eram esperadas, imagina no mundo lá fora. “Tenho medo do que pode acontecer com eles na rua, mas não criei meus filhos para ficarem presos em casa. Eles são inteligentes, cuidam da própria vida e de mim e são as melhores pessoas do mundo”, declara.

O medo de Alaine tem (muita) razão de ser. Além das investidas homofóbicas com que José e Quitta têm que lidar, a família perdeu, em 2015, um amigo gay espancado e esfaqueado e que teve o corpo jogado em um valão em Nova Iguaçu. “Foi chocante para todos nós. O Adriano (da Silva Pereira) frequentava a minha casa. Nós perdemos o chão”, lembra. Para gays, lésbicas, transexuais e transgêneros, viver na Baixada Fluminense requer cuidados a mais e uma boa dose de coragem. De acordo com o Centro de Cidadania LGBT da Baixada, vinculado ao programa Rio Sem Homofobia, do Governo do Estado, 154 casos de violência contra gays foram registrados na região em 2014. Já o Grupo Gay da Bahia, a mais antiga entidade de luta pelos direitos dos homossexuais no país, divulgou que 318 LGBTs foram assassinados no Brasil em 2015, um a cada 27 horas. Em 2016, o número passa para 343,ou seja, um a cada 25 horas.

Estupro

Alaine sabe que o medo pode paralisar vidas, mas nunca se esquivou das tragédias. Foto: Angelina Nunes

Ciente que o medo pode paralisar uma vida, Alaine, como boa representante do matriarcado dos Pinheiro (“Na minha família, as mulheres são fortes, cuidam de tudo. Somos matriarcas”), nunca pensou em cruzar os braços e nem se esquivar das tragédias, mesmo quando teve dificuldades em lidar com elas, como no estupro em 1990. “Levou uns dois, três anos para eu falar abertamente do que me aconteceu. A partir daí, dizia para mim mesma: a culpa não é minha”, revela. Ela sofreu violência sexual numa noite chuvosa, após ter ido a uma venda comprar cigarros e leite. “Um cara desconhecido passou a me seguir e, um pouco antes de chegar na esquina de casa, ele apontou uma arma para mim e me levou até um terreno baldio”, conta.

Daquela noite, ficaram imagens e gostos que ela leva para a vida toda: “Agarrada ao leite e com dois maços de cigarro e o troco nas mãos, fui violentada no terreno, tendo um revólver na cara e em cima de um monte de cascalho. Fiquei muito machucada”. E acrescenta: “Até hoje, sinto gosto de sangue na boca, gosto de ódio”. Ao chegar em casa após o estupro, Alaine diz ter sido abraçada pela família e pelos amigos. Ela não sabe o que aconteceu com o criminoso depois que a ocorrência foi registrada na delegacia, mas desenvolveu, a partir daí, Síndrome do Pânico. “Tive que fazer terapia por conta disso e para aprender a viver sem trauma”, afirma.

E, ao que tudo indica, conseguiu. Prestes a completar 50 anos no próximo dia 21 de março, Alaine só pensa, agora, numa grande festa. A chegada da nova e promissora idade não a assusta nem um pouco: “A idade não te define. O que te define é como você se coloca no mundo. Se você estiver bem consigo mesma, pode ter 50, 60, 70, que você será bonita para os outros”. Há cinco anos, as 45 primaveras foram mais rigorosas. “Existe a Alaine antes e depois dos 45. Algumas coisas, como a menstruação, cólicas e insônia, pioraram. Mas, outras, como a criatividade, melhoraram. Agora, vou fazer alguns exames para saber se posso partir para a reposição hormonal”, adianta.

Bem longe da sua Macondo particular, o Ponto Chic de Nova Iguaçu, Alaine é uma mulher que parece lidar bem com os novos tempos. Para Luana, José e Quitta, que a acompanharam nessa entrevista realizada na Praça Paris, próximo ao Centro do Rio, a mãe pode ser definida com uma imagem poética: a ventania. “Sou mãe, mulher, solteira, produtiva e busco a inclusão dos meus rebentos. Também sou feita no santo há 32 anos, filha de Ogum com Iansã”, se autodefine a Mulher 50mais, que tem nas antepassadas Laudelina e Neuza, vivas até hoje, seu grande exemplo. “Mesmo com todas as dificuldades, tenho muito mais do que minha mãe tinha na minha idade. Me sinto uma rainha”, avalia.

Para todas elas, filhas dos ventos e dos raios, mulheres latino-americanas tão bem encarnadas na Úrsula de García Márquez, personagem considerada por muitos críticos literários a síntese da força feminina no continente, um pouco da matriarca de Cem Anos de Solidão que parece descrevê-las também: “Ativa, miúda, severa, aquela mulher de nervos inquebrantáveis (…) parecia estar em todas as partes desde o amanhecer até a noite já bem avançada”.

Everton Silvalima, especial para Mulheres50mais

Everton Silvalima, especial para Mulheres50mais

Everton Silvalima, 47, mora no Rio, mas é natural de Nova Iguaçu (RJ), cidade que frequenta sempre que vai visitar a família. Formado, em 1992, em Comunicação Social pela extinta Universidade Gama Filho, começou a trabalhar como estagiário na redação do jornal O Dia em 1989, quando as matérias ainda eram escritas em laudas e batidas em máquinas de escrever. Pós-graduado em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio, em 1996, onde realizou monografia sobre a obra Menino de Engenho, de José Lins do Rêgo, lançou-se no desafio de estudar Cinema na UFF ainda na década de 1990, empreitada que garante terminar um dia. Desde 1995, trabalha em assessorias de imprensa de órgãos públicos. Apaixonado por samba, é Imperiano de Fé, adora Dona Ivone Lara e passa boa parte do ano esperando o Carnaval chegar.

6 Comments

  • Lidiane da C. F. de Moura

    Parabéns pela matéria Everton Silva Lima, fiquei muito impressionada com a garra dessa mulher, não é qualquer pessoa que passa pelo que ela passou e consegue seguir em frente desse jeito!

    25 de janeiro de 2017 em 5:48 pm
  • Luis A. Calixto

    Não sei se fiquei mais impressionado com a qualidade desse texto irretocável ou com a sensacional história de vida dessa mulher. Que feliz encontro entre o autor da matéria e matriarca guerreira de Nova Iguaçu. Encontro que resultou num texto comovente e brilhantemente escrito. Um verdadeiro brinde aos leitores! O paralelo com a Úrsula de Cem Anos de Solidão denota uma perspicácia que poucos teriam ao fazer o retrato (quase poético) dessa mulher. Parabens!

    25 de janeiro de 2017 em 11:27 pm
  • Rosangela

    Parabéns pela matéria !
    O site está excelente , que venham mais matérias como essa , mostrando a garra e força das mulheres !!

    31 de janeiro de 2017 em 9:33 pm
  • Marina

    Parabéns ao jornalista Everton que de forma brilhante soube costurar essa história tão forte e linda da guerreira Alaine!!!!

    31 de janeiro de 2017 em 9:38 pm
  • José Carlos

    Texto bastante interessante!!!!

    31 de janeiro de 2017 em 9:48 pm
  • Mariana Biaggi

    Uauuu. . Que história! Parabéns pelo texto!

    31 de janeiro de 2017 em 10:12 pm

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