Bordana: histórias de superação das bordadeiras do cerrado

Quando, aos dezoito anos, deixei Minas Gerais e me mudei com mala e cuia repletas de sonhos para o Rio de Janeiro, carreguei comigo as lembranças da infância e da pré-adolescência vividas no cerrado. O cheiro e o sabor intensos das frutas da região _ como o pequi, araticum, cagaita, jatobá, buriti e jenipapo _carimbaram para sempre meu olfato e paladar, assim como a paisagem influenciou meu olhar sobre o mundo.

A beleza singular do cerrado está reproduzida nos trabalhos da Bordana, cooperativa de bordadeiras de Goiânia. As peças retratam frutos e flores da região, como o ipê em suas diversas cores, a delicadeza do algodãozinho do cerrado e do capim estrela, e as flores do barbatimão e do jequitibá. A instituição nasceu em 2008 por iniciativa da geógrafa Celma Grace de Oliveira, que havia perdido a filha vítima de leucemia. A menina, Ana Carolina Grace, sonhava se tornar estilista e fazer um trabalho comunitário com as mulheres do bairro onde vivia, o conjunto habitacional Caiçara. Em seu processo de superação, a mãe convidou as vizinhas para transformar o sonho da filha em realidade.

Soube da existência da Bordana pela internet e aproveitei uma viagem a Goiânia, em dezembro de 2016, para conhecer mais a fundo a história da cooperativa. Além de amar os bordados, gosto também de me aventurar nesta arte. Comecei a bordar quando esperava minha primeira filha, aos 24 anos. Depois, por causa do jornalismo, deixei agulhas, linhas e bastidores engavetados por longos anos, mas, após a aposentadoria, voltou-me a paixão pelos trabalhos manuais.

Uma amiga goiana me acompanhou na visita à cooperativa. Minha primeira surpresa foi com o perfil do bairro, de casas simples e bem cuidadas, com flores no jardim e pés de fruta no quintal. Acostumada aos conjuntos habitacionais gigantescos e opressores do Rio de Janeiro, esperava encontrar algo parecido no Conjunto Caiçara.

A cooperativa Bordana funciona em um terreno cedido pela associação de moradores do bairro, onde as bordadeiras trabalham em grupo aos sábados e dão aulas para iniciantes durante a semana. No andar térreo, sob a sombra de mangueiras, acontecem também aulas de ginástica e outros eventos comunitários. No segundo andar, ficam a administração e a sala de exposição dos bordados.

Cheguei munida de gravador, câmera fotográfica, papel e lápis. Ou seja, uma típica repórter adentrou a sede da cooperativa, supondo que iria apenas conversar e comprar algumas peças. Mas, fiquei tão encantada com a qualidade e beleza dos trabalhos, que aproveitei a oportunidade e fiz uma aula de bordado.

Minha professora foi a paranaense Rosenélia Theiss da Silva, que me contou da transformação ocorrida em sua maturidade, quando saiu da toca em que se encontrava para conviver e desenvolver seus talentos junto com outras mulheres. O bordado e o trabalho coletivo transformaram não só a vida de Rosenélia, mas as de outras dezenas de mulheres. A cooperativa é formada por vinte bordadeiras, mas muitas outras participam sem serem associadas.

Esta reportagem é sobre mulheres que reencontraram a alegria de viver e se reinventaram na maturidade a partir do bordado. “Mãos que se unem em linhas que se cruzam” é o lema da Bordana.

As bordadeiras trabalham em grupo aos sábados e dão aulas para iniciantes durante a semana. / Fotos Elvira Lobato

Eu tinha medo de viver…

Rosenélia é uma senhora de pouco mais de sessenta anos, que ostenta belos cabelos grisalhos. Nascida em Curitiba, começou a trabalhar aos onze anos de idade, como babá. Casou-se aos 26 anos e foi morar com o marido em Minaçu, no norte de Goiás, a 504 Km da capital do Estado. A cidade ganhou este nome (que significa mina grande, em tupi guarani) por causa da mina de amianto, onde o marido de Rosenélia foi trabalhar. Lá tiveram três filhos.

Em 1985, a família se mudou para Goiânia. O marido montou uma oficina de mecânica pesada e colocou a empresa no nome dela. Tempos depois, ele a deixou com os três filhos adolescentes. Após a separação, ela descobriu que estava cheia de dívidas e inadimplente. Até a casa em que morava tinha sido penhorada.

– Quando cheguei à Bordana, estava em depressão. Não via perspectivas para a minha vida, mas procurava poupar meus filhos dos detalhes dos problemas financeiros, para que não ficassem magoados com o pai. Fui aprovada em um concurso público, mas não pude assumir o emprego por causa do nome sujo. Fiquei tão deprimida, que mal saía de casa.

Ela estava no fundo do poço quando sua vizinha Gleidy Marques, também curitibana, a convidou para uma reunião na casa de Celma Grace, onde discutiam a criação da Bordana. Rosenélia nunca tinha bordado. Agulhas e linhas não faziam parte de seu universo até então, mas ela se empolgou com o projeto. Não só aprendeu a bordar, como se tornou professora e assumiu a diretoria administrativa da Bordana.

Ao relembrar os dias de angústia e a transformação ocorrida em sua vida, Rosenélia se emocionou e não contivemos as lágrimas.

– Fui me fortalecendo com o trabalho coletivo. Lidar com gente é muito bom. Minha vida deslanchou depois dos cinquenta anos, e o bordado foi o passaporte para esta mudança. Perdi o medo. Me descobri corajosa, alegre e comunicativa. A depressão me deixou algumas sequelas, como alergia e hipotireoidismo, mas confio que isto vai passar. Eu, que tinha medo até de conversar com as pessoas, hoje viajo para outros estados sozinha para dar cursos e para mostrar os trabalhos da cooperativa.

As peças retratam frutos e flores da região, como o ipê em suas diversas cores. / Fotos: Elvira Lobato

Precisava me sentir útil

 Cláudia Martins Veiga, dez anos mais jovem que Rosenélia, vivia bem ao lado do marido e dos filhos, mas carregava uma ferida que não cicatrizava: a perda de três filhos recém-nascidos, em decorrência de uma incompatibilidade sanguínea: ela tem sangue RH negativo, e os bebês eram positivos. A família morava no interior, onde não havia recursos médicos para corrigir o problema. Ela teve outros filhos saudáveis.

– Meu marido é caminhoneiro e sempre viajou muito, transportando carga, inclusive, para fora do Brasil, e eu cuidava da casa e das crianças. Quem me despertou para o bordado foi a Celma. Nós nos conhecemos na igreja. Quando a filha dela faleceu, ela me convidou para participar da cooperativa. Meus filhos estavam crescidos e eu tinha um problema sério na coluna. Não conseguia ficar muito tempo sentada nem em pé. Vivia angustiada. Eu precisava me sentir útil. A Bordana me ajudou a superar os problemas e a abandonar os remédios para depressão. Descobri que podia fazer algo diferente, bonito e que me dava prazer.

As peças produzidas pela Bordana são feitas por processo coletivo. Há pessoas especializadas em riscar os desenhos no tecido e outras que costuram. As bordadeiras trabalham sobre o desenho traçado, mas cada uma imprime sua nota pessoal. Segundo Cláudia, nenhuma pessoa borda igual a outra. “Posso interferir na escolha das cores e sempre ponho um detalhe que me identifica”.

Um prazer da maturidade

Assim que cheguei à sede da Bordana, notei que todas as mulheres presentes estavam na faixa dos cinquenta anos ou mais. O interesse pelo bordado estaria associado à maturidade?, indaguei. Quem me respondeu foi a gaúcha Nélia Stecca, de 70 anos.

– Muitas mulheres descobrem o prazer do trabalho manual na maturidade, quando têm mais calma e maior poder de concentração. Raramente vejo jovens interessadas em bordado. Este interesse, acredito, acontece na fase posterior da vida.

Nélia aprendeu a bordar quando era menina, mas, assim como eu, deixou esta habilidade de lado por muitos anos, quando estava muito ocupada com a profissão e com a criação dos filhos. Trabalhou como professora até os 68 anos. Como o marido viajava muito, as filhas a aconselharam a buscar uma atividade para ocupar o tempo. Ela reaprendeu a bordar e se tornou diretora administrativa e financeira da Bordana.

“Reaprendi a bordar em um mês e me encantei pela atividade coletiva. O bordado ocupa muito espaço na minha vida hoje. Quando me dou conta, as horas passaram. É gratificante estar ativa, participar e colaborar com o outro ”.

Decisões em grupo

 Todas as decisões importantes da cooperativa são aprovadas em assembleia. O critério para remuneração das bordadeiras foi decidido deste modo. Elas recebem um valor por hora de trabalho, baseado no salário mínimo. Encomendas grandes como colchas e cortinas são executadas por várias bordadeiras e cada uma delas recebe o correspondente às horas que dedicou. O mesmo critério vale para a remuneração dos desenhistas e costureiras.

A paranaense Gleidy Marques é uma das fundadoras da Bordana. Filha de militar, mudou-se para Goiânia aos dezessete anos. Lá, formou-se em geografia, mas não chegou a exercer a profissão. Ela bordava profissionalmente, por encomendas, quando Celma a convidou para participar da criação da Bordana.

Elas começaram a se reunir sem saber que tipo de trabalho iriam fazer. Havia apenas o interesse em construir algo coletivo que ajudasse a amiga a superar a dor da perda da filha e ao mesmo tempo elevasse a autoestima de todas as participantes. Decidiram pelo bordado e pela temática do cerrado, tão caro e familiar a todas elas. “O que nasceu para confortar uma mãe virou uma coisa grandiosa”, afirmou Gleidy.

Para saber mais sobre a Bordana e conhecer os produtos artesanais, acesse coopbordana.blogspot.com.br

Endereço da cooperativa: rua Cabo Verde, 5, Conjunto Caiçara, Goiânia. Tel: (62) 3565-1323.

Elvira Lobato

Elvira Lobato

Mineira, de uma família de 17 irmãos, foi criada na zona rural de Pitangui, na região do Cerrado. Aos 19 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde participou da resistência à ditadura e construiu sua carreira de repórter. Formada pela UFRJ, atuou na imprensa escrita por 39 anos, 27 deles na “Folha de S. Paulo”, onde fez parte do núcleo de repórteres especiais de 1992 a 2011, quando se aposentou do jornalismo diário para se dedicar a projetos pessoais. É autora do livro “Instinto de Repórter”, sobre seus métodos de investigação jornalística. Está no ranking de jornalistas mais premiados do Brasil. Recebeu, entre outros, o Prêmio Esso de Jornalismo, em 2008, pela reportagem sobre o patrimônio dos dirigentes da Igreja Universal do Reino de Deus. Em janeiro de 2016, publicou a reportagem “TVs da Amazônia Legal-Realidade que o Brasil Desconhece”. Aos 62 anos, casada, tem três filhos e dois netos. Alimenta sua alma de repórter com incursões pelo interior para fotografar e coletar histórias da gente brasileira. Faz bordados lindos e um pão de queijo….

2 Comments

  • Mônica Farisi

    Amei a reportagem!
    Valorizo muito trabalhos manuais e tenho muita habilidade com isso.
    Aprendi a fazer crochê aos 7 anos e , aos quase 49 (rsrs), ainda faço um pouquinho todos os dias. O trabalho manual me ajudou a sair da depressão…
    Lembro que, às vezes, cansada, me deitava e sentia que algo estava faltando…virava de um lado pro outro na cama, e nada de dormir…então me levantava, pegava uma peça já começada e trabalhava nela até o sono vir…
    O prazer de ver pronta uma peça que a gente faz…é indescritível!

    31 de maio de 2017 em 9:28 am
  • Celma Grace

    Elvira, mais que surpresa maravilhosa!!! Estou aqui pesquisando noticias sobre a Bordana e me deparo com essa matéria linda e gratificante. Muito feliz querida pelo seu encantamento com o nosso trabalho, uma pena que não estava presente, para te conhecer pessoalmente. Em nome de todas as nossas arteiras, gratidão pelo carinho e pela matéria. Quando voltar a Goiânia, vamos combinar um café, aqui na Cooperativa, vai ser um prazer.
    Estamos nesse momento finalizando um campanha de financiamento coletivo para ajudar na produção e lançamento da próxima coleção, que será uma homenagem a nossa pequena Ana Carol – “O sonho de Ana e maravilhoso mundo cerrado”. Quando você voltar, teremos novidades!! Grande beijo!!! Celma G. Oliveira.

    5 de junho de 2017 em 12:32 pm

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