As belas que nos desculpem…

Vamos falar de feiura? Pesquisa mostra como mulheres que se acham feias vivem esse peso em suas vidas e como o feio é  representado nas produções culturais, na mídia, no imaginário cultural.

Durante meses, a pesquisadora Gabriela Altaf, fluminense de Itaperuna, fez um busca ativa em redes sociais e mails. Seu objetivo era encontrar mulheres que se considerassem feias para entender como elas enxergavam o peso da feiura em suas vidas. O resultado dessas entrevistas e suas conclusões estão na dissertação de Mestrado em Estudos de Cultura apresentada à Universidade Católica Portuguesa de Lisboa sob o título “As Belas que me Perdoem: Marcas do Feio na Contemporaneidade”. De volta ao Brasil, Gabriela prepara uma série de documentários sobre o corpo que será veiculada numa rede de 220 TVs públicas no Brasil em 2017 e já pensa em uma tese de doutorado sobre mulheres maduras. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Para sua dissertação de Mestrado, Gabriela Altaf pesquisou como a feiura afeta a vida das mulheres. / Fotos de Ana Lúcia Araújo.

Para sua dissertação de Mestrado, Gabriela Altaf pesquisou como a feiura afeta as mulheres. / Fotos de Ana Lúcia Araújo.

Qual foi a sua motivação para investigar o peso da feiura?

No segundo ano do programa de Mestrado, quando chegou a hora de escolher aquilo que gostaria de investigar, quis juntar à Cultura outro tema de grande interesse meu, a Psicologia. Eu tinha uma percepção de senso comum de que o atributo da beleza pesava mais sobre as mulheres. Aí fui investigar se, de fato, isso era verdade. E quis ampliar o meu estudo: qual seria o lugar da construção social do feio na cultura contemporânea, que idolatra o belo? Como aquilo que é considerado feio hoje era representado nas produções culturais, na mídia, no imaginário cultural? Além disso, sempre concentrei meus trabalhos em tentar dar visibilidade aos que estão à margem, aos invisíveis. Enquanto todos falavam do belo, enquanto as revistas nos massacram com receitas para ficarmos belos, me intrigava pensar sobre qual seria a vivência da feiura.

Por que o atributo da beleza afeta mais as mulheres, na sua opinião?

Concentrei o meu estudo na cultura ocidental. Da pré-história à Idade Média, a representação do corpo feminino tinha um caráter secundário em relação ao masculino e, muitas vezes, negativo, sendo associado ao mal e ao diabólico, sem que houvesse conexão entre o feminino e a beleza. A mulher era identificada como uma armadilha diabólica.

A virada deste quadro tem início na Antiguidade, intensificando-se no Renascimento, quando observamos a elevação da mulher como a personificação do belo em textos filosóficos, na pintura e na poesia. No início do século XX, com as revistas femininas, o cinema, a fotografia e a moda, passa a haver uma associação direta do atributo da beleza ao feminino.

Como você chegou até essas mulheres que se diziam feias?

Foram dez meses de anúncios em redes sociais, envio de mails, contatos através de pessoas conhecidas em Lisboa, onde estava residindo. Nesse período, recebi apenas dez respostas e destas, só seis chegaram até o fim da pesquisa e aceitaram falar abertamente sobre a questão. Algumas entrevistadas abandonaram a pesquisa na hora do encontro ao vivo. Não apareceram. Deram bolo. É um tema muito difícil, eu compreendo. Falar sobre questões tão íntimas, vivências tão dolorosas, não é nada fácil. Eram todas portuguesas porque eu estava lá. É importante dizer que era uma pesquisa qualitativa. Eu não estava preocupada com a expressividade numérica, foco de uma pesquisa quantitativa, mas me interessavam a densidade e a profundidade dos relatos.

Que aspectos da vida você pesquisou?

Minha proposta foi estudar a percepção de como o fato de se considerar feia afetava a vida profissional, social e amorosa dessas mulheres. Sendo a pesquisa em Estudos de Cultura, precisei inserir a dimensão cultural na investigação, discutindo também como se dava a construção social do feio na cultura contemporânea, em vez de realizar, exclusivamente, uma análise psicológica da questão. Foi muito difícil estudar esse tema porque há poucos estudos sobre o feio. A maioria é sobre o belo.

Foto de Ana Lúcia Araújo

Foto de Ana Lúcia Araújo

“Algumas entrevistadas abandonaram a pesquisa na hora do encontro ao vivo. Não apareceram. Deram bolo. É um tema muito difícil, eu compreendo. Falar sobre questões tão íntimas, vivências tão dolorosas, não é nada fácil”.

Sua pesquisa foi feita em Portugal, que tem uma sociedade mais conservadora, talvez mais machista. Isso não fez diferença? Se fosse em outro país, o resultado seria diferente?

Acho que a vivência da feiura seria igualmente massacrante em qualquer país. Mas quanto à questão de as mulheres aceitarem falar sobre esse tema, não sei. Talvez, no Brasil, eu não tivesse levado tanto bolo porque aqui conheço mais pessoas. Ou, talvez houvesse mais pessoas respondendo ao anúncio. Era um assunto muito íntimo e doloroso, e lá (em Portugal) eu não conhecia tanta gente como aqui. Portanto, acho que a diferença seria apenas no número de pessoas entrevistadas e não no conteúdo. O Brasil é machista, tal como Portugal. O machismo talvez apareça de forma diferente. Mas, em última instância, o massacre sobre o corpo feminino causa, igualmente, constrangimentos, dores e violências, aqui e lá.

O feio não é relativo e cultural?

Sim. Por isso, usei os critérios de autoavaliação. Mulheres que avaliavam a própria aparência como feia. Não há um feio e um belo absoluto. A feiura varia em relação à cultura, ao período histórico e à sociedade em que você está inserido.

De que idade eram suas entrevistadas?

Coincidentemente calhou de serem duas mulheres na faixa dos 20 anos, duas na faixa dos 30 anos, e as outras duas em torno de 40 anos de idade.

Não tinha as de 50? Ou elas se acham mais bonitas? (risos)

Senti falta dessas de 50. Em dez meses, infelizmente, elas não apareceram para que eu pudesse entrevistá-las. Mas já penso nessa abrangência da pesquisa para uma tese de doutorado.

Para essas entrevistadas, o fato de se considerar feia trouxe prejuízos maiores no âmbito profissional ou no âmbito amoroso e social?

O que posso dizer é que, para todas as entrevistadas, no âmbito amoroso, as vivências da feiura implicaram em experiências muito ruins. Ou porque não se sentiam à vontade com o próprio corpo, levando a uma vida sexual pautada pela vergonha, ou por ouvirem comentários desastrosos sobre sua aparência. Cabe destacar que as entrevistadas que chegaram até o final da pesquisa eram heterossexuais, e seus relatos referiam-se a parceiros homens. Geralmente parceiros que, em algum momento, tiveram alguma fala ou algum olhar muito perverso diante de seus corpos. Eu me lembro de uma entrevistada, uma das mais velhas, que disse uma frase que me marcou muito. Ela estava na casa dos 42 anos. O parceiro teria dito a ela que a sua gordura o desestimulava brutalmente do ponto de vista sexual. Aquilo para ela foi pavoroso e causou-lhe um trauma profundo. Outra também nessa faixa etária contou que, por conta de se achar feia desde criança, de sofrer bullying pelo irmão, pelo pai, pelos vizinhos, e por ter construído uma imagem de si mesma como muito feia, isso acabou se traduzindo, na sua vida amorosa, por escolha de parceiros sádicos. E, com isso, ela foi tendo uma vida amorosa desastrosa. Um dos parceiros dizia que seu joelho era mole, que sua bunda era super flácida, que seu cabelo era horrível. Por conta de uma autoestima extremamente fragilizada, podemos dizer que essas mulheres, no âmbito amoroso, tiveram, em algum momento de suas vidas, vivências destruidoras por causa do sentimento da feiura.

E no campo profissional, elas também perderam muito? É possível medir essa perda?

No âmbito profissional, quando a mulher tinha uma ocupação em que a imagem não vinha como carro-chefe, elas disseram não ter sofrido prejuízo. No rol das entrevistadas, havia uma mulher que trabalhava como tradutora em casa, outra que trabalhava como massoterapeuta, e uma terceira que atuava na área de marketing. Essas disseram que não sofreram prejuízos por causa da imagem. Mas quando a questão da aparência física estava em jogo, sim. Por exemplo, uma queria trabalhar no ramo da moda e disse que nunca teve coragem de se candidatar a uma vaga no setor. Outra queria ter sido coreógrafa e também não teve coragem de ir adiante. A terceira pretendia ser cantora e também não seguiu essa profissão. Por conta da autoestima baixa, e de julgarem que sua aparência não se enquadrava nos padrões estéticos exigidos, elas acabaram por desistir dessas carreiras.

E que profissões seguiram?

A que queria seguir moda fez arquitetura. Ela estava procurando trabalho, quando a entrevistei, e achava que nem para arquitetura teria chances porque, na hora de uma entrevista, acreditava que essa questão da imagem ia pesar muito. Então, mesmo que ela tivesse as mesmas qualidades profissionais de uma pessoa magra (ela se achava bem gordinha), por exemplo, ela acreditava que a magra ia ser escolhida. A outra que queria ser coreógrafa trabalha na área de tradução e secretariado. A terceira trabalha como tradutora freelancer. Essa tradutora, aliás, tem uma história muito sofrida. Antes de atuar em tradução, ela atuava no mercado de vinhos e queria atender aos clientes, trabalhar na frente do balcão. Ela fala oito línguas e, apesar disso, foi colocada pelo chefe no setor no estoque. Segundo ela, quem foi para frente do balcão só falava português e estava lá porque podia ser considerada uma mulher bonita.

E como foi o impacto na vida social?

Nessa parte, todas relataram constrangimentos e prejuízos. Por se julgarem feias, elas evitam determinados espaços, evitam ir à academia de ginástica, à praia e à piscina. Outras evitam festas ou ambientes em que pode haver pessoas mais bonitas do que elas. Uma chegou a dizer que a comparação para ela era insuportável, preferindo ficar em casa a sair. Outras tiveram que trocar de escola por causa do bullying. Tenho relatos de várias delas sobre uma solidão muito grande na infância e na adolescência porque elas foram se afastando das pessoas por conta dessas experiências traumáticas. Um relato que me marcou muito foi o da secretária e tradutora. Ela contou que o irmão constantemente a chamava de feia, de gorda, de horrível. Um dia, o irmão, alguns anos mais velho, a estava esperando na porta do colégio. E veio um amigo dele e perguntou “Quem é essa monstra?”. Ele respondeu: “É minha irmã”. Ela conta que, naquele momento, teve a confirmação de que era feia e monstruosa. Aquele estranho teria dado a confirmação de tudo o que ela ouvia de seus tios e tias, primos e primas, de seu próprio irmão.

Se a pesquisa fosse feita no Brasil, um país de clima quente, onde as pessoas expõem mais o seu corpo, o resultado poderia ter sido diferente?

Talvez fosse ainda mais cruel e violenta a vivência da fealdade. Na semana passada, recebi uma mensagem pelo Facebook que me deixou extremamente tocada. Era de uma colega europeia que se casou com um brasileiro e veio passar seis meses no Brasil. Nós nos conhecemos quando eu morava em Lisboa e ela ficou sabendo do meu estudo nessa época. Depois desses meses no Brasil, ela disse que só conseguia pensar na minha pesquisa porque nunca se sentira tão julgada pela sua aparência quanto nesse período “brasileiro”. Esteve em várias cidades aqui. “Nunca me senti assim na Europa. Pela primeira vez, estou preocupada com o que eu vou vestir, com as minhas rugas…”, ela me disse. E olha que ela ainda nem tem 40 anos. Enquanto isso, na Europa, a mulher mais madura é valorizada pela sua experiência, por saber o que quer. Aqui, ela constatou a “cultura da novinha”. Na sua fala o que percebemos é que a velhice e o excesso de peso aparecem como sinais daquilo que deveria ser combatido.

Você está preparando uma série de documentários sobre o corpo para a TV pública. Como explica esse papel central que o corpo tem na vida das pessoas hoje?

Procurei investigar como foi a sua transformação ao longo do tempo. Hoje o corpo é completamente exibido, temos uma subjetividade que é exteriorizada. Nem sempre foi assim. É um fenômeno contemporâneo. Há uma transição de um corpo escondido, característico da Modernidade, para um corpo que é completamente exibido, não só pelas selfies, mas pelas câmeras instaladas em todos os lugares, pelas webcams nos chats, pelos snapchats, pelas redes sociais que solicitam a exibição da nossa imagem o tempo todo. Antes você tinha o desejo de uma vida boa, hoje deseja que sua vida seja invejada. Nesse regime de completa visibilidade, o corpo precisa estar “perfeito”, porque se torna o palco dos seus fracassos e dos seus sucessos. E isso tem suas consequências. Passamos a observar fenômenos aterradores. No Reino Unido, por exemplo, cada vez mais, menores de 18 anos estão fazendo cirurgia de labioplastia, sem qualquer indicação médica. São adolescentes que começam aos 13 anos querendo diminuir os lábios vaginais. Nos Estados Unidos, uma pesquisa de 2014 mostra que a explosão dos selfies aumentou em cerca de 30% as intervenções cirúrgicas entre os americanos, especificamente na face: rinoplastias, cirurgias nas pálpebras e implantes capilares. Outro fato que me impressionou foram as lojas virtuais da Google e da Apple, poucos anos atrás, terem lançando um brinquedo para crianças a partir de nove anos de idade em que bonecas, apresentadas como estando acima do peso, podiam ser submetidas a uma série de procedimentos estéticos. Deviam ser transformadas de “desafortunadas” em “magras e bonitas”. O aplicativo foi retirado do ar, uma semana após seu lançamento.

Mas ao mesmo tempo em que o feio é condenado, também não há uma cultura do suposto feio que rende lucro? Por exemplo, os Monstros S.A, as bonecas do Monster High?

Isto foi um aspecto muito interessante de se observar na pesquisa. Em relação ao nível de sua representação nas produções artísticas e culturais da atualidade, aquilo socialmente construído como feio é representado de forma lúdica e consumido com prazer pelo público. Há uma explosão de imagens do feio na cultura atual. Observamos um status de docilidade e comicidade do feio, anteriormente considerado elemento de contestação, de provocação e de denúncia. Temos hoje o feio dócil, por exemplo, em brinquedos infantis e em produções altamente lucrativas da Disney, que nos ensinam a adorar simpáticos monstros ou o ogro Shrek; temos Lady Gaga e seus fãs, carinhosamente chamados de little monsters; ou a explosão de reality shows em que o grotesco, uma das imagens do feio, é explorado e consumido à exaustão, alcançando altos índices de audiência. Na moda, vemos também aquilo que era considerado feio em alta: vestimentas rasgadas, sujas, e bagunçadas fazem parte do look daqueles considerados “descolados”.

Entretanto, quando analisadas estritamente em relação ao corpo, as marcas do feio devem ser completamente combatidas. A emergência da medicina como fonte da verdade impele o cuidado constante do corpo. O sujeito, hoje, repousa e ilude-se nas imagens que lhe restam: as do feio lúdico e a de seu próprio corpo pretensamente perfeito.

Cristina Alves

Cristina Alves

Tem um gostinho especial por trabalhar em equipe. Carioca, criada no Méier, subúrbio do Rio, tem experiência de mais de 25 anos de jornalismo diário. Participou da cobertura e/ou edição de todos os planos de estabilização do Brasil pós-redemocratização. Sua relação com o jornalismo econômico começou quando era “foca” no “Jornal do Commercio” e ainda cursava a Escola de Comunicação da UFRJ, onde se graduou. Fez especialização em Políticas Públicas na UFRJ e tem MBA de Petróleo e Gás pela Coppe-UFRJ. Trabalhou ainda no “Jornal do Brasil” e em “O Globo”, onde foi editora de Economia entre 2007 e 2014, depois de atuar como repórter e subeditora. Cobriu por diversas vezes o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. Desenvolveu diversos produtos editoriais para plataformas impressa e digital. Hoje, é sócia da empresa Nau Comunicação. Casada, é mãe de João e Antônio. Adora mergulhar num bom livro.

Comments are closed here.